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A PROSA DE GABRIELA FRÓES

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A navalha (cega) de Occam



Acordou, os olhos ainda inchados do sono e do vinho que aparecia no canto do lençol, uma marca escarlate. Pensou na ironia. Olhou para o relógio, mais por reflexo que por interesse. Ponderou se valia a pena levantar, o frio cortante fora das cobertas, o dia escuro. A metade da cama vazia, ainda amarrotada, indicava a presença que há pouco estivera ali. Levantou, sentiu as pernas tremerem, uma fraqueza natural que lhe doía com especial intensidade naquele momento. Ao andar em direção ao banheiro, sentiu o peso da noite anterior em seu corpo, a cabeça explodindo pelo excesso de álcool, ou talvez só pelo excesso. Lavou o rosto, pegou a escova de dentes e mal se olhou no espelho.
Sentia-se um pouco alheia a tudo. Foi até a cozinha fazer café. Errou na medida, ficou forte, amargo, inapropriado. Tentou compensar com mais adoçante e deixou o café melado, quase azedo. Colocou mais água: fraco demais, frio demais. Pegou o leite, tentou misturar, mas sabia que não tinha mais conserto. Era como se pressentisse. Foi para a sala e ligou o computador. As notícias passavam despercebidas, como se o mundo não acontecesse naquele dia. Passava pelas páginas e links sem ler uma linha sequer, e deu-se por satisfeita assim. Conversou com uma ou duas pessoas pelo programa de mensagens instantâneas e, sem dar muita atenção aos acontecimentos alheios, tentou ser simpática, só para manter a rotina.
Ficou ali por uma hora ou um pouco mais, até que tocou o telefone. Atendeu, perguntou da viagem, do congresso, riu, comentou do próprio tédio, da procrastinação, da saudade. Passou a mão pelos cabelos, ainda despenteados, e enquanto segurava o telefone entre o rosto e o ombro esquerdo, na ausência de algo melhor, colocou um lápis pra segurar o coque que agora ajeitava os fios desgrenhados por mãos clandestinas. Nada em sua voz indicava qualquer sentimento que pudesse causar suspeita, e não se sentia mal, na verdade. Contou do livro novo que estava lendo, "daquela escritora inglesa que escreveu o romance belíssimo sobre as famílias..." Ele lembrava, Zadie Smith. Perguntou a ela como andava a tese, conversaram brevemente sobre a dificuldade de escrever. Desligou. Foi até a janela e, por uma fresta, sentiu o primeiro vento realmente frio do ano em seu rosto. O corpo ainda quente se arrepiou, e a sensação familiar a obrigou a sair de perto da janela. Decidiu ir ao cinema, olhou a programação no computador e escolheu um desses romances franceses que passava ali perto. Foi tomar um banho.
A falta de sol lhe caía como punição, ela pensou, ainda que estivesse decidida a não dar atenção a isso. Era o primeiro dia frio do outono. Ligou a água do chuveiro e saiu para pegar uma toalha limpa. Entrando no quarto, desviou-se das roupas pelo chão, o salto, a saia, o sutiã. Voltou para o banheiro, os azulejos já úmidos, o espelho embaçado, e foi para debaixo do chuveiro. Ficou ali, parada, por uns minutos, sentindo a água escorrer pelo corpo. Sob a água quente pensou sobre a vida, sobre a noite anterior. O calor voltou a seu rosto, as borboletas lhe chegavam à altura do umbigo. Sorriu, lembrando de pequenos detalhes, as mãos, o suor, a pressa, o desejo, o gosto de sal. Abraçou o próprio corpo, como fazem as mulheres quando sentem frio ou algo um pouco mais doído; mas não era dor, era algo sem nome, algo bom.
Sentiu-se verdadeiramente calma pela primeira vez naquela manhã: maior, mais forte, mais completa. Lavou bem os cabelos com seus cremes mais especiais, desligou a água, ficou ali no vapor esperando alguns minutos enquanto os fios eram hidratados, folheou uma revista feminina, passando os olhos sobre uma matéria que falava sobre a mutilação sexual de mulheres na África. Passou os olhos pelos olhos das fotos e sentiu pena de todas aquelas mulheres, pensando no prazer de que eram privadas. Nas páginas seguintes, a moda outono-inverno. Os chapéus, as luvas, os casacos de lã, as meias e botas. Marcou uma página, pensando em comprar o sapato da foto. Tentou se lembrar do momento em que passou a se importar menos com mulheres africanas e mais com sapatos. Não lembrou.
Enxaguou os cabelos, enrolou o corpo na toalha, mais um abraço em si mesma. (Imperceptíveis a qualquer pessoa, aqueles segundos a mais apertando a toalha com os braços cruzados sobre o corpo lhe deram uma sensação de proteção momentânea.) Depois secou os cabelos, o rosto, o corpo que já esfriava junto com o cômodo. As pontas dos dedos ficando geladas, os pés se dando conta da falta de calor. Pente, desodorante, calcinha. As gotículas de água escorrendo suavemente pelos azulejos eram como um choro discreto, daqueles que ninguém nota. Ela não notou.
Encarou o próprio rosto refletido por trás da umidade do espelho. Fez um olhar de deboche para aquele dia escuro. O frio pode ser bom. Sobre a pia, o último preservativo, o que não fora usado. Lembrou-se do cansaço, de novo o arrepio. Enquanto via seu corpo refletido no espelho ainda embaçado, imaginava o outro corpo ali, tocando sua pele, beijando suas pernas, acariciando os seios. Olhou nos olhos daquele arremedo de reflexo e sorriu, satisfeita.
Colocou a calça jeans, um sutiã limpo, camisa branca. Deixou os dois botões de cima abertos, criando um decote maior, e calçou seu sapato mais bonito, vermelho, de salto, que a ela dizia tudo. Foi ao banheiro arrumar o cabelo, secou um pouco as pontas com o secador, pôs uma tiara para que o vento não desarrumasse tanto, brincos, maquiagem. Olhos, cílios, boca. Pegou um cordão de prata bem discreto e o colocou na frente do espelho, conferindo o batom, já pensando em pegar o casaco. Foi quando notou alguma coisa logo acima do sutiã.
Aproximou-se do espelho, passou a mão sobre a superfície, buscando nitidez, mas o reflexo era ainda um tanto turvo para detalhes. Olhou para baixo e viu uma mancha escura no seio direito, quase no decote da camisa. Uma mancha roxa, do tamanho de uma moeda, mostrava o que devia ser secreto. Colocou um dedo sobre a mancha, e o roxo doía um pouco. Tentou achar qualquer coisa pra cobrir. A solução foi um vidrinho antigo de base: passou-a sobre a marca. A base parecia escura demais para aquele tom de pele que há muito não via sol, e ficou como um borrão, uma falha. Pegou um cachecol para cobrir, mas não foi suficiente. Fechou mais um botão da camisa. Colocou o casaco e saiu, já atrasada para a sessão.
Saiu do elevador e pela portaria, andando apressada até a esquina da rua. Sentia-se extremamente desconfortável com a recente descoberta. Atravessou correndo a avenida lotada de carros e, ao chegar à outra quadra, sentiu que o ar lhe faltava. Apertou o próprio ventre, onde antes voavam borboletas. Continuou andando, agora um pouco mais devagar, sentindo-se um pouco tonta. Por sorte, o cinema era logo ali.
Era um teatro antigo, daqueles que em maioria foram convertidos em igrejas. Mas não este, e eram salas lindas, antigas, enormes, com colunas largas e teto altíssimo. Chegando à bilheteria, comprou seu ingresso e se dirigiu à bomboniére, pensando em pipocas salgadas que poderiam ajudar a recuperar a pressão sangüínea. Viu de longe uma amiga do casal, amiga dela e do marido, que não via há algum tempo, e que imediatamente se dirigiu a ela para cumprimentá-la. Mesmo sem vontade, achou que era melhor dizer um “oi”, ao menos, tentando ocultar o sentimento de culpa que já lhe era evidente.
Andou em direção à mulher e sentiu as pernas fraquejarem, a visão escurecer e, sentindo que ia cair, segurou-se em uma das colunas. Disse aos olhares curiosos que estava tudo bem, e ao olhar para baixo, viu a mancha por dentro do decote da camisa. Sentiu como se a camisa fosse clara demais para esconder um roxo tão forte, mesmo com a base tentando cobrir. A mancha tornara-se, em segundos, uma metonímia dela mesma, uma mulher inteira vergonha. Não conseguia mais se distinguir daquela marca no seio direito. Respirou fundo e olhou para frente. Cumprimentou a amiga, que perguntou se estava tudo bem. Respondeu rapidamente, e a mulher olhou para seus sapatos vermelhos, os elogiou. Ela ajeitou o cachecol e sorriu. Disse coisas que se espera em um encontro assim, “que bom te ver”, “vamos manter contato”; pequenas mentiras que contamos diariamente, enquanto já não lhe saía da cabeça a mentira maior.
Teve certeza de que a amiga notara a mancha. Pensando que o dia não estava para romances franceses, afinal, desistiu do filme. Saiu em direção à porta, o ingresso na mão. Decidiu ir para casa e voltou, cambaleando pela calçada, com as mãos sobre o seio, tentando esconder a mancha roxa sob a base e sob a camisa, sem êxito. Ainda tonta, a pressão sangüínea ainda baixa, sem saber mais o que sentir. Ali, no meio da avenida, sentia-se uma Hester Prynne do novo milênio, a enorme letra “A” bordada em seu peito denunciando seus desejos mais íntimos. Andava devagar, querendo ir mais rápido, sem que suas pernas ainda cansadas da noite anterior conseguissem acompanhar seus pensamentos.
Deu mais um passo antes de atravessar a pista, pisou em falso em um bueiro e seu salto direito ficou preso. Forçou para puxá-lo e o salto quebrou, agarrado entre as grades. Agachou-se e tentou, nervosa, puxá-lo de volta, mas hesitou por um momento e a pequena estaca vermelha escorregou por entre seus dedos, caindo dentro do buraco. Tentou rapidamente pensar no que fazer, mas não era possível abrir a grade. Com olhos já desesperados encarava o salto, a meio metro de si, completamente inalcançável. Irrecuperável.
Olhou para o bueiro, depois para o próprio pé. O sapato mutilado lhe causou horror, espanto, uma recém-adquirida piedade de si mesma. Lembrou-se das mulheres da revista e pensou na dor, na violência de ser privada de uma parte de si. Pensou em como não se permitia privar-se de nada, fechou os olhos e viu o homem que há tão pouco estivera em sua cama. Olhou novamente para o sapato, que certamente iria para o lixo. Já sem forças para esboçar qualquer reação diferente da que se seguiu, sentou-se no meio-fio e chorou.
A imperfeição que agora o sapato exibia lhe era insuportável. Pessoas inicialmente pararam para socorrê-la, mas não havia o que socorrer. Era um choro cansado, pesado, há muito contido. Ficou ali por alguns minutos, e se permitiu chorar. Pelas mulheres africanas, por seu sapato, por ela e por todas as vidas invisíveis que de tempos em tempos a consumiam. Chorou até perder as forças, manchando a manga da camisa com a maquiagem ao secar as lágrimas, criando novas marcas para aquele dia que, contrário à sua vontade de que tudo fosse natural e corriqueiro, ela reconhecia, não precisaria de marca nenhuma para ser lembrado. Ainda sentada, olhava para o bueiro, para o salto partido que não mais se via, levado pela água do esgoto a ser companheiro de dejetos, ratos e baratas. E chorava, o rímel manchando as maçãs do rosto. Não havia consolo para aquele salto vermelho perdido.

Voltou-se para o bilhete de cinema amassado em sua mão. Agora inútil, o bilhete vencido ria dela, como um atestado de suas incapacidades, de sua incompetência. A sensação estrangeira de felicidade durara tão pouco, quase significando nada. Pensou sobre a própria ingenuidade, e seu rosto corou. Por via das dúvidas, guardou o bilhete na bolsa. Levantou-se e, mancando, seguiu para casa.]



                                                               *    *    *




Gabriela Fróesé mestra em Literatura Inglesa pela UERJ, professora de Língua Inglesa e tradutora; foi Editora Assistente da Editora Record.








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