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"A BUNDA", CONTO DE JARDEL DO AMARAL JUNIOR

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          É uma bela manhã de domingo. O sol de verão penetra pelos cômodos do apartamento. Chego à varanda, apoio as mãos no parapeito e olho para o céu, sem nenhuma nuvem. Abaixo os olhos em direção à piscina do condomínio onde várias pessoas se banham, porém tem algo que atrai a minha atenção, e logo, não consigo desviar o olhar. Vejo a bunda. Ela está exposta aos raios ultravioletas; sua dona, num platô de água rasa no interior da piscina, há uns trinta metros da minha posição, se colocou de joelhos, apoiou a frente do quadril na borda da espreguiçadeira e deitou de bruços. Lá está você, bem empinadinha, com pele morena e um pequeno fio dental vermelho separando suas nádegas. Seu tamanho não é GG, mas é G com certeza. Daqui de onde estou não sei se possui as temidas celulites, porém você me hipnotiza. Existem outras espalhadas pelo local, mas só consigo me concentrar em você. Gostaria de estar bem próximo, para explorar dois dos meus sentidos: o tato, para lhe apalpar; e a visão, para lhe observar a superfície da pele. Acho que estou dando bandeira, vou sair daqui. Alguém pode perceber e me taxar de pervertido.
        Após ir ao banheiro e tomar o café da manhã, estou no meu quarto e troco o meu pijama por um short e camiseta, a seguir forro a minha cama e abro a janela para ventilar o cômodo e lá está você. A bunda. Nesse verão por dezenas de vezes me deparei contigo se bronzeando, portanto se tornando para mim muito familiar. A sua dona cobre a cabeça com um chapéu branco de abas largas e nunca consegui ver o seu rosto. Se cruzar com ela em algum lugar não a reconhecerei, mas se expô-la para mim saberei de quem se trata. Saio da janela e vou para cozinha lavar a louça.
         Já é final da manhã e meu casal de cachorros pula nas minhas pernas, eles querem comer, deduzo. Vou ao lado do tanque, na área do apartamento, pego dois recipientes brancos, duas bananas na cesta de frutas e uma faca na gaveta da pia na cozinha. Agacho-me. Descasco as bananas e as pico nos recipientes. Fico de pé coloco a faca na pia e as cascas no lixo e retorno à varanda cercado pelos cachorros. Coloco tudo no chão e os animais comem abanando os rabos. Novamente apoio minhas mãos no parapeito e sem nenhuma cerimônia fixo o olhar em você, que continua lá, mas agora a sua dona joga água em você com as mãos. Será o suficiente para você lhe refrescar? Suponho que ela deve cuidar bem de você. Passar protetor solar, creme hidratante, massagens e colocar calcinha de algodão bem confortável para dormir. Ah! Agora você vai embora, é enxuta com cuidado e coberta por uma bermuda colorida. Adeus. Observo ela se afastar. Tudo poderia ser como no passado, e com certeza eu a compraria, seria minha escrava. Vem a minha mente história que li uma vez: uma escrava, da África do Sul, tinha a sua bunda gigantesca. Foi levada para à Europa para ser exibida como aberração. Como é mesmo a história? Isso aguça a minha curiosidade. Vou ver na internet.
         Pego o laptop, me sento na cadeira da cabeceira mesa de jantar, apoio o cotovelo sobre o vidro e ligo o computador. Minutos depois estou abrindo a página de um site de busca contendo várias informações sobre a escrava. Leio seis resultados da busca. Decido fazer um resumo, para mim mesmo, em voz baixa, enquanto passo pelas informações na tela.
         - A escrava que tem o nome africâner de Saartie Baartman, sendo equivalente na nossa língua como Sarazinha no seu primeiro nome. Nasceu na província do Cabo, na África do Sul, era da família Khoisan. As mulheres da sua etnia tinham na genitália os pequenos lábios imensos e também bundas gigantescas. Foi por vontade própria para Londres na Inglaterra em 1810 (onde passou a ser chamada de Sarah), com o objetivo de exibir seus atributos e enriquecer, mesmo tendo que dividir tudo com os ingleses que a agenciavam. Devido a imbróglios jurídicos e policiais teve que parar a exibição. Em 1814 foi vendida para um francês que também era domador de animais. Ele a manteve em péssimas condições. Era sua escrava. As pessoas podiam apalpar a sua bunda mediante um pagamento e ainda desembolsando mais dinheiro teriam o seu corpo. Foi prostituída. Exposta a multidões, foi ridicularizada. Tornou-se objeto de estudo dos homens da ciência. Cartunistas sempre a desenhavam como um ser humano desproporcional, devido à bunda. Ela acabou alcoólatra e em 1815, morreu. O domador de animais a vendeu para um museu em Paris.
         Uma vida muito triste. Tudo por causa da bunda. Queriam se apropriar dela, estudá-la e ridicularizá-la e sua dona pereceu por isso. Como o mundo era e é cruel. Pensei.
         Vem-me a cabeça uma indagação. Qual a origem do nome? Faço nova busca na internet e aparece na tela: A palavra bunda é de origem angolana e congolesa, nos dialetos Kimbundo e Kikongo, respectivamente e significa traseiro. Quando da chegada destas duas etnias, como escravos ao Brasil, a palavra bunda foi incorporada ao vocabulário português, assim como outras, tendo como exemplo: Kambada (que significa turma); Arenga (que significa bate-boca e briga); Moleke (que significa filho, menino, filhote). Fico olhando para o teto e sorrio, pois constato que após envolver a minha atenção na bunda lá de fora aumentei o meu conhecimento geral. Infelizmente não posso agradecer a ela pessoalmente.

         Após desligar o laptop volto para varanda e apesar de saber que ela não está mais lá, fico frustrado por não vê-la. A frustração aumenta, quando vem à minha cabeça que é o final de março. Portanto, o verão vai acabar e consequentemente ela vai se ausentar da piscina. Será que no próximo verão ela estará lá se bronzeando? Espero suportar quase um ano para revê-la, ao vivo; pois durante o inverno só a terei em meus sonhos. A bunda. 

foto: Kazuo Okubo



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Jardel do Amaral Junior é médico e escritor. É autor de dois romances: Aconteceu em Monte Castelo e Mudança de Rota. Vive no Rio de Janeiro. Email.






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