O CORPO NO ESCURO
O livro de Paulo Nunes chega às nossas mãos em uma tátil edição pela Cia. das Letras. Digo isso por que o relevo na capa é a primeira marca de que no terreno do livro, alguém habita as páginas. Um detalhe simples para a maioria talvez, mas que acrescenta muito à experiência do leitor que imediatamente pode se conectar à obra passando os dedos na capa. Os versos finais do poema da quarta capa: “passos no corredor provam / que este planeta é habitado” parecem justamente complementar a capa, quando a tocamos, percebemos que estas páginas são habitadas.
Nas primeiras páginas da obra de Paulo Nunes somos alertados pelo seu prólogo de que entramos em seu espaço/obra. Pela sensação física e inicial da capa, partimos “tateado” esse corpo/obra poema a poema.
As duas partes centrais de O corpo no escuro, Obvni e Tempo das águasna verdade são dois livros que contém a produção poética de Paulo Nunes desde nos últimos anos e agora condensada em um volume único para que possamos usufruir da sua lírica, reflexiva e flutuando na experiência de si. A poesia despertada de realizações pessoais dos elementos que o autor observa. O mínimo, não observado pela maioria, que desperta: “um monstro se arrasta / até que se ergue / em homem e continua”.
Seus poemas suscitam perguntas, observam a vida e impressões cotidianas. O escuro da existência, que talvez impulsione o homem/autor tem, na obra de Paulo Nunes, a possibilidade de vislumbre apenas pelo escopo do poético. Não há respostas para todas as perguntas e o entendimento é sentido, praticamente “tateado”, pois na poética não é preciso iluminar, ou descrever, o poético é o relance, o realce do detalhe, único e filtrado pelo poeta. A sutileza da “... outra margem / deixa um fio de ar / que, enquanto avança / lhe assegura o retorno”, como nestes versos do poema que dá título ao livro. Ali está o cotidiano, transposto em poesia, como no poema “Equilíbrio”, um abismo transposto pelo suspiro, um do autor, na escrita e outro, a leitura.
Os diversos elementos cotidianos de Obvni (“A escada”, “Endereço”, “Parapeito”, “O assassino”) têm contraponto na segunda parte, Tempo das águas. Justamente em poemas como “A correnteza” e “Círculo habitado”, que mencionam a velhice, o potencial lírico deste “corpo no escuro”, que é o livro de Paulo Nunes encontra um elemento central ainda mais consistente e percebemos uma escrita muito mais amadurecida em concisão e poder imagético. Considerando que o livro de Paulo reune uma produção por ele enunciada com datas, creio que nesse momento – curiosamente o meio, o centro, tátil, físico, do livro – encontramos o poeta plenamente consciente do ofício do texto. Ao centro do corpo, sua essência.
É também nesse momento de maior profundidade no texto de Paulo Nunes, que o tema da morte parece tornar-se mais frequente. A morte não é o tema central do livro, não há um tema central. Contudo, assim como um ser humano, este organismo no escuro, composto pela lírica de Paulo Nunes, não pode ser central, precisa ser múltiplo, cotidiano, fazer perguntas e de respostas e não-respostas, compor gradualmente um crescimento em profundidade que espelha a própria vida. Ganha o texto em experiência, como nós, quando crescemos, através de experiências que compõem vivências diversas. Logo o passo final, o fechamento, não poderia diferir da presença da finitude. O corpo no escuroé uma metáfora da criação que se aproxima do criador, em sua consciência do diverso e na simplicidade da sua finitude. Sem rebuscamentos ou hermetismos, uma fruição clara de uma vida muitas vezes líquida (como diria Zygmunt Bauman, grande pensador da nossa contemporaneidade), mas nem por isso sem perder-se em superficiallidade. Não obstante o poema final – que me faz ter vontade de reler, de trás para frente – mesmo na instância do fim, alçar vôo: “No que que é pássaro, voar. / … / E morrer, no que é homem.”
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capa do livro |
foto: Hid Saib
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Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.