MATERNIDADE
Na parede, um Cristo ensanguentado ainda sofre
o sacrifício de ter sido filho
Mas quem repara?
Ali estão os bebês tão esperados
E as mamães repousam em quartos coloridos
Os papais – lentes de tudo
A mãe inoportuna pergunta: e o meu?
Pela escada, minha senhora
No terceiro subsolo
Lá está ele
Nasceu sem asas
POUCAS PALAVRAS
economizo palavras e gestos embora
um rumor cresça em tremores
cozinho os sintomas
vou mexendo o caldo
ora o fogo alto
ora apenas chama
ora me consumo
ora resumo
AUDÁCIA
Excepcionalmente, não vou morrer hoje.
Entre sonhos diluídos
ou vencidos
às vezes me apavoro. Outras
morro de rir. Fino-me para daí a pouco
Finada
Afinadíssima com minhas manias
E erros sistemáticos
Não, não vou morrer
Não hoje. Tenho certeza.
E posso dizer que derrubei um mito
Se estiver viva amanhã de manhã
ACOLHIDA
Inaugurou hoje na minha perna esquerda
uma dor
Da perna direita irradiavam, até agora,
os sinais da falência,
mais fortes agora, atenuando no decorrer do período
retornando à noite - nuvens de um tempo instável
Agora a perna esquerda também traz
essa dor que já chega cansada
e pede convívio.
Vem, junta-te a nós.
Já somos uma orquestra
Ossos, músculos, nervos a vibrar
Tens um papel proeminente nessa vida bípede.
Bem-vinda dor da perna esquerda.
Andemos
* * *
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Helena Ortiz, por Natália Grill |
Helena Ortiz nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, é jornalista e taquígrafa, Idealizou o projeto de poesia panorama da palavra – jornal de literatura. Poeta e editora (Editora da Palavra), reside no Rio de Janeiro. Estreou em 1995 com "Pedaço de Mim". Em seguida, vieram "Margaridas" (1997); "Azul e Sem Sapatos" (1997); "Em Par" (2001); "Sol Sobre o Dilúvio" (2005); "O silêncio das xícaras" (2009); "Alfinetes" (2012). Além disso, escreveu "baseado em quê?", em dois volumes, sobre a descriminalização da maconha. Mantém o blog "integrada e marginal". Leia mais sobre a autora aqui e aqui.