PALAVRA, SOMENTE A VAZIA
Volvido, o vácuo, revolto,
meu verso seguinte perdi;
ficou só o som do acidente:
cidade pra fora de mim,
família bem longe, assim,
sem filhos, sem juros, sozinho,
ficou só o não do acidente,
seu não como um sim sonolento.
E tudo que eu traga ao poema,
tumor, suicídio, prisão,
castelo de cartas em vão,
impeço dar fim ao problema.
Verdade só soa no som.
Poema, somente o que sua.
POEMA, SOMENTE O QUE SUA
Et cetera. O sal do poema,
a página em branco que acena
et cetera. Ouvir o vazio,
vazar no poema o vazio,
a sombra da imaginação.
Saber que a palavra instala
um som. E que o som ilumina
a página, sala sensível,
lugar onde o eco se torna
visível. O som do sentido
deseja o sentido do som.
Por isso, somente o poema
sonoro aceito. Poema
que ladre o limite ladrável.
QUE LADRE O LIMITE LADRÁVEL
O cão que comia meu cão,
na canifagia lambia
também um pedaço do som:
escreva o poema assim...
Escreva a imagem sonora:
o canto do cisne, o fagote
da fome fluindo o furor.
Palavra só crava se forte.
Se uso a palavra-canção,
se tanto repito a palavra
“palavra”, a voz a canção
cantou, ensinou a lição:
o cão que comia meu cão
comia melhor a palavra.
COMIA MELHOR A PALAVRA
O som sempre sai da pessoa.
A fala é o ser de quem soa.
A fita gravada amarela,
o nome que invento pra ela.
O nome que o vento levou,
levou meu amor para fora,
embora... Levou tudo embora.
O amor que levou meu amor,
pra fora daqui, muito longe,
deixou-me no ouvido meu nome
no som que por ela soava.
Agora é o silêncio quem ruge.
Ouvia seu som no meu nome,
meu nome que ela falava.
MEU NOME QUE ELA FALAVA
Palavra me alimentava.
Palavra me alimentou.
Meu nome na boca do amor,
o som que soletra a palavra,
palavra que o amor soletrou.
Agora não tenho mais nome.
A fonte da fala secou.
Preciso escutar o seu som.
O sim que você me soava,
a página o ouve com fones
(o som e o sentido do amor).
Meu nome que nela falava,
ouvi-lo em sua boca era bom.
O jeito como ela falava.
O JEITO COMO ELA FALAVA
O sol era mais laranjado.
Você e a laranja na mão.
Debaixo dos seus os meus pés.
Gramado debaixo dos meus.
A foto inventada na mente.
Dançar no meio do silêncio.
Floresta de espelhos somente.
A forma do amor na canção.
Seus lábios beijavam meus lábios.
Meus lábios beijavam os seus.
O amor só durou uma tarde ?
A vida durou uma tarde ?
O sol segurando na mão ?
Meus passos a sombra dos seus ?
MEUS PASSOS A SOMBRA DOS SEUS ?
Ouvi-la, envolvia-me o som
e o sol, sim suave, eterno,
etéreo, estéreo. Fazia
sua cara de esperta, sabida.
Apenas porque o dizia,
eu nunca negava seu certo
(se voam no mar aviões ?).
Deixei-me guiar por oráculo.
O acordo era mais que secreto:
as coisas diziam você
dizendo o nome das coisas.
Na concha do ouvido me disse
o fluxo escandido na língua
e o verso que o vento fazia.
E O VERSO QUE O VENTO FAZIA
Falar a palavra e seu medo
(sem erva da selva em segredo)
(sem senha da febre sagrada)
(o sonho e o sono suspensos).
Romper o silêncio com o dedo,
o som do silêncio que pensa.
Parir a canção no degredo
(fagia de mim me degrada ?).
E o corte instalado no tempo,
o tempo que o tempo precisa,
incide no aqui do momento.
A fala já soa no ouvido.
O tempo já foi transformado.
O dito já teve seu parto.
O DITO JÁ TEVE SEU PARTO
Sereia me disse na caixa
de som: decibéis idolatro
(explode o silêncio por dentro),
a festa de preces não mata.
Sussurra a sereia da caixa:
meu canto corrói como rock,
a fala que falha a fábula.
Os sons que a guitarra fazia
sabiam que havia a sereia
que a caixa de som transmitia.
Não lembro de tudo na festa,
em festa prefiro estar bêbado.
Me lembro do som da guitarra,
e um pouco do som da sereia.
E UM POUCO DO SOM DA SEREIA
Me fale, espelho sonoro,
se o dito que eu disse confirma
o dito do povo que fala
que a língua, se inculta e puta
parindo tão bela, dá a bala
perdida: pra vala minha pátria,
que sabe ser só uma palavra
falida no sol do mercado.
Sonoro espelho, me fale
o tipo de som que mais vale:
que soa de dentro pra fora ?
que bale de fora pra dentro ?
Mensagem que o dentro – palavra
de vento – conversa em poema.
DE VENTO, CONVERSA EM POEMA
No mesmo momento em que alguém
começa uma fala versando
que aquilo que alguém quando fala
de amor ou palavra mais rara
não prova que o som se apaixone
(o falling in love do som),
no mesmo momento da lábia,
começa alguém-guém gaguejando
que-que o principal de-defeito
que a fala de um gago de-de-
demonstra é a fa-falta de jeito
de o som ficar bom nas palavras
se um resto persiste no dito,
o eco que fala comigo.
O ECO QUE FALA COMIGO
Nenhuma canção me comove
agora. O orvalho caiu.
A noite acabou. Meu amor
morreu. Fiquei surdo, insensível.
Não ouço as verdades da vida:
que o tempo desliza em silêncio,
que a fala que cai da ampulheta
avisa que “agora” é um vocábulo
excêntrico, órfão de tempo.
E “agora” é melhor um espaço:
concebe em matéria um momento.
Memória é o que guarda esse flash.
Palavra nenhuma caminha,
mas deixa pegadas no ouvido.
MAS DEIXA PEGADAS NO OUVIDO
Cantei meu amor pela fala.
Na fala cantei meu amor.
Agora a memória se cale.
Se vale cantar o passado,
mais fala o amor do presente
(o tempo que deus compreende,
apenas o que compreende).
E o som não precisa da escrita
no tempo presente da fala.
No nome do amor de quem fala.
Seu nome escrito na fala.
Imagem do amor quando fala.
A fala que fale o falar.
A fala do amor que falava.
A FALA DO AMOR QUE FALAVA
Compus em silêncio os sonetos.
O luto solene calava,
calava, calou tanto tempo,
o tempo que o verso pedia.
Pensava que a forma ferisse
o vago poeta que eu fosse.
Morri, mas ainda estou vivo.
O som do poema comigo.
Não quero saber de mais nada
que não seja o frio do verso.
O azul congelado em meu rosto.
Mulher que violo na noite,
sereia sonora poesia.
Palavra, somente a vazia.
*palavra: poemas do livro "Barato" de Ricardo Pedrosa Alves. recitados pelo autor, durante o 1° Mallarencontro - VOX URBE de 15/01/13 (Wonka Bar, Curitiba).
*imagem: Frank McNab