primeira mãe
toda mulher descende
da grande e primeira mãe
a mãe de terra e raízes úmidas
como fornalhas a gerar nos ventres criaturas viventes
do primeiro ao último ser que respira
traz em seu lago de sangue
o laço do cordão umbilical
e segura nossas mãos onisciente
beija nossos dedos
tal qual quando nascemos
e carrega-nos doce e leve ao seu arrego
apaga de nossa memória os pesadelos
e o passado
destrói e ponte
e torna a estrada terreno selvagem
e sem retorno
voltamos a ser fetos
presos aos afetos de quem nunca quis nos abandonar
voltamos a ser só ventres nas raízes de abetos
da floresta onde tudo começou
toda mulher descende
da primeira e grande mãe
e nos abriga entre suas pernas com fogo
para não mais retornarmos ao mundo
é como morrermos
e só muito depois
acordarmos
mordidas por narcisos
mulheres com dores
vestidas com plumas
de mães serpentes
mordidas por narcisos
recém abertos
miram-se como flores
com asas coloridas
alpaca subindo a montanha
o sol fendendo o céu
há as que carregam bandeiras
de carmim esfarrapadas
as que vomitam soldados
as que arrancam os cabelos pelas suas mortes
e outras
que arrastam o ventre ao chão
coroas de espinhos ornadas de louro
e conduzem suas casas às costas
e fogo ameno e folhas de zimbro
arrastam correntes de cães
e pesos para balança de peixe
nas pontas dos dedos
arcadas de madrepérola nos ouvidos
e pequenas conchas nas orelhas
mulheres com dedos de terra
e arado de madeira
e faca de ferro ao cinto
transportam bálsamo e água
e muitas outras coisas que portam
acentos agudos na letra”A”
servem chá de ervas aromáticas
em potes de terracota
e dançam como o vento em torno do fogo
e rodopiam até as alturas
há de serem acompanhadas pelas anciãs
há de trazerem para a aldeia
o espírito dos ancestrais
há de rebentar pela sua luz
os novos entes
os que caminham
desde tempos idos
o porvir
ouro para o nascer do sol
postas á terra
três moedas de prata
com faces de deuses
há muito esquecidos
para lembrar a natureza
trina
do sagrado
e o caminho que deve ser trilhado
sete moedas de bronze ou de cobre
como paga
para entrar no campo dos mortos
em livre passagem
porque aquilo que é levado
para ali
ali deve permanecer
mas as vezes é necessário
conversar com os mortos
aplacar sua ira
e o medo deles
para com o destino dos vivos
(muitos ainda se lembram vivos)
um cântaro repleto de água
para que toda a sede seja saciada
e o destino das aves seja adequadamente
traçado no céu
e semente abundante
para a fome de todos aplacar
também é necessário terra fresca
para a raiz das árvores
e os pés cansados
e todas as trilhas e pedras
da jornada
porque é preciso breu
para pintar a noite
ouro para o nascer do sol
e algodão para tecer as nuvens
:.
só assim poderás
descansar sob o véu do céu
mantra
quando
trouxeram o corpo
da mãe
envolta em algas apodrecidas
enrolaram seus cabelos com as mãos
e fizeram do sangue que escorria
e do pranto
a mortalha
porque o caís à noite
é visto como uma muralha instransponível
e os titãs de chapas de aço enferrujados
fazem da estrutura pouso
são luzes irreais
e mal iluminam a faina
de mãos e bocas estrangeiras
moídas e feitas carga
e corre o cheiro baço
e o perfume inconveniente
das vaginas das moças prostitutas
dedicadas e tensas
no aguarde de sua vez de trabalhar
no descanso do sêmen derramado
e os pederastas exilados
sempre voltam de mãos vazias
mas suas mães os esperam
(descer à terra é um parto que se repete)
e as pedras que se derramaram no mar
dormem profundos sonos
sob às águas barrentas
e o sumo dos navios atracados
e cada peixe que sobrevive no canal
é uma sepultura que nada
em seus estômagos jazem
tantos marinheiros devorados nas profundezas
e agora este luto infinito
que se entende como corda no horizonte
e em seu canto de corais engastados às âncoras
o mar rebenta como um mantra
*palavra: poemas de Edson Bueno de Camargo. recitado pelo autor, durante o 1° Mallarencontro - VOX URBE de 15/01/13 (Wonka Bar, Curitiba).
*imagem: foto de Cecília Camargo