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“Psyche Abandoned”, Pietro Tenerani. Foto: Lee Sandstead. |
Soneto branco
Queria meu soneto da cor branca,
todo branco, que nunca fosse negro,
pois o negro é profundo, cheio de ecos
e coisas das quais só se sente o cheiro.
O branco, não. O branco é superfície
e silêncio, o suspense de um relâmpago
retido na espessura de um espelho;
branco é a cor das coisas sem conceito.
Não o branco solúvel, cor de gelo,
nem o branco volátil, cor de espuma,
nem o branco dourado do ouro branco;
quero um branco absoluto, branco abstrato,
o mais puro, o mais claro — mas sem brilho:
quadrado branco sobre fundo branco.
Furor parnasiano
Eu sou a Musa Impassível,
a Virgem de amianto,
impermeável ao sôfrego
fogo de tuas entranhas.
De meus seios, jorram
cascatas de mármore,
arquiteturas, estátuas
de antigos deuses
mutilados, mas
nenhuma gota
que aplaque a súplica
de teus lábios ávidos.
Contra um cinto de castidade
forjado no bronze, a frio,
teus dedos se debatem
em meu corpo seminu;
é inútil. Trouxeste
a chave (de ouro)?
Eu, a Musa Impassível,
estéril e etérea, um frígido
Moloch; em minhas coxas,
o poema é um coito sem gozo.
Estudo cabralino de um gato
Observo um gato dormindo:
parece sereno e pacato,
porém, ao impacto mais leve,
ele se dilata num salto.
Cheio de gatuna malícia,
prepara seu bote e se enfuna;
fere a paz noturna com o
chicote veloz da coluna.
Chicote não: trilho de ferro,
limpo mecanismo, gatilho;
talvez um rastilho de pólvora
rápido e explosivo, mas frio.
Tudo é movimento no gato.
Mesmo se muitíssimo lento
eu o represento, pressente-se
a pressa espreitando lá dentro,
pois ele se educa na caça
— ávida e voraz arapuca
que não falha, nunca desarma,
nem se degringola de culpa.
Bicho assustadiço, cismado;
seus pelos se eriçam por isso:
na trama difícil dos músculos,
um gato supõe precipícios.
Origami
A Tati Aoke Toumouchi
De papel de seda finíssimo,
fiz teu corpo: fibra a fibra
modelado na pétala, forma
de pura textura e volume.
Sobre a límpida e mínima
película, moldei teus seios
em torneios e volutas,
lívidos torvelinhos,
e os dedos se dedicaram
a cada minúcia sinuosa
na delicada dobradura do
sexo, desdobrando lábios
em abismos, labirintos.
Assim te concebo: nua
e toda nuances, criada
da lâmina de sal e espuma
do mar, como as ondas,
que se espiralam peroladas
durante a queda (tens
a idêntica consistência
de uma onda do mar).
Pique-nique em Auschwitz
Entre um cigarro e outro,
a Imperatriz de Auschwitz
tomava chá com bolachas
à luz do abajour encapado
com pele de cigano, projetando
sobre as paredes encardidas
um enxame de mariposas
incendiadas.
Através da janela, vê-
se um poeta crucificado
entre dois psicanalistas e
sobre seu cadáver delicado
abelhas esclerosadas
preparam a ferrugem.
Très chic, a
Imperatriz de Auschwitz
aduba com vísceras incineradas
as flores que germinam flácidas
entre cactos e canteiros
de arame farpado.
Ao pé da cruz, onde a sombra,
encharcada de sangue, coagula
cogumelos e lagartas, uma doce
garotinha mastiga um pássaro,
uma garota sem cabeça.
E a Imperatriz de Auschwitz,
com seus músculos de chumbo
e borracha, um corpo de con
torcendo em colapso, urrava
currada por um panzer
entre um cigarro e outro.
Sonho recorrente ou seis passos para um poema surrealista
Assim se sucedeu naquele sonho:
era noite quando uma jovem moça
perguntava-me as horas. Eu lhe disse:
“Não sei não, senhorita, mas é tarde;
não há ninguém na rua, não há nada”.
Ela, então, deu um tiro na cabeça.
Era noite de novo; na cabeça
a sensação de estar vivendo um sonho
como se caminhasse sobre o nada.
Chegou-se a mim aquela jovem moça:
“Morri, ressuscitei; é muito tarde.
Mate-me agora mesmo!”, ela me disse.
Era de noite quando alguém me disse:
“Veja só, estourei minha cabeça
e não posso emendá-la, pois é tarde!”,
e tudo se passava como num sonho.
Diante de mim, aquela jovem moça
estava morta; não dizia nada.
De noite outra vez, não se via nada.
Do escuro, soou uma voz que disse:
“Não se esqueça daquela jovem moça
que levou um balaço na cabeça!”.
Lembrei-me vagamente de algum sonho,
mas não pude retê-lo. Era tarde.
De noite. Muito escuro. Muito tarde.
Já não me lembro mais de quase nada
e vejo as coisas turvas, feito um sonho.
Só sei que certa vez alguém me disse:
“Cuidado! Não atire na cabeça!”.
No chão, jaz o cadáver de uma moça.
Percebo-me: sou uma jovem moça
andando por aí — tarde, bem tarde.
Estou morta e não tenho mais cabeça;
nas mãos, trago um revólver e mais nada.
“Não há ninguém na rua”, alguém me disse.
Não sei se sou real nem sei se sonho.
É sempre o mesmo sonho, a mesma moça,
algo que alguém me disse muito tarde,
um tiro e só. Mais nada na cabeça.
Emmanuel Santiago nasceu em São Lourenço, sul de Minas Gerais, em 1984. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e formado em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), atualmente, reside em Jacareí/SP e cursa o doutorado em Literatura Brasileira, também na USP. É autor de Pavão bizarro, livro de poesia a ser publicado em breve pela Editora Patuá.