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O ARCO DE SAGITÁRIO, por Helena Barbagelata

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Ilustração: Centauro com violoncelo (1910), Odile Redon



O Arco de Sagitário

Ludwig.

Nascidos debaixo das mesmas estrelas, pobres e belas, com esteiras de música para estender aos precipícios.



Vivemos dos acordes, da sucessão dos
acordes que se enrolam e quebram na
ondulação serena da tarde, sentimos o
saibo das palavras, o frémito dócil em
que trazem peugadas de céu nas voltas
das aves marinheiras; sentimos a espuma
que nos pousam sobre os braços, como
uma lembrança chorada do mar, e o
pólen em que se desfazem, macias
como a cauda de oiro de um oboé;

Nunca escrevemos para a glória, o que
temos no coração deve sair, querem
apresar os ventos, também as marés,
interditar a encadeação das notas, o
seu galope solto, dependurámos as
regras que nos tapam os abismos,
jugulámos os parloteios inúteis,
só ficou a melodia pulsando a cada
passo, gritando estrídula em cada
arqueamento de uma linha, tingindo de
lágrimas, escorrendo como lágrimas
pelas mãos dobradas de sonhos;

Vivemos dos acordes, da sucessão dos
acordes, entregamos o corpo aos temporais,
cada fímbria de música, ao arremesso
de um amor perdido, à certeza da solidão
inteira, por entre as assombrações das
ruas, e o escárnio pateado dos salões;
e longe, longe, o ráptus silencioso
por onde chega a cadência, o doce
sorvedouro que nos aparta dos homens
por dias, o sol alegra-se por uns, a lua
por outros, nós sempre caminhámos
pelo trilho suave e constelado de um
nume, e a escuridão calada em volta;

Nunca escrevemos para a glória, o que
temos no coração deve sair, trocámos os
cárceres das escolas pelos prados que
rebentam de cores, trocámos professes
e cartilhas pelas figueiras e os duros
gumes da sorte; a nós nos criamos,
tivemos por mestres as provações
intermináveis das estrelas, as noites
inacabáveis de luas afumadas em
chagas e brados, o pescoço jovem da
mãe oferecido à morte, o pai abalado
pelas vielas odorinas da balsa, longe
do mundo na ebriedade da fome;
soerguemos todas as vozes que nos
sepultaram, os risos, as injúrias, os
prantos, as querelas, os berros,
um coro violento, estremecendo
desde as raízes húmidas da terra,
trepando doloroso de ossada em
ossada até rasgar as bocas em
espasmos e suplícios;

Vivemos dos acordes, da sucessão dos
acordes, com a cabeça entre as mãos,
por entre as frestas que espreitam
de uma mansarda para o rio, com
as meditações entre as mãos, formosas
e fundas descendo desde a água dos
olhos até aos arroios tristes que cantam;
a melancolia é um mal tão grande como
uma paixão, uma doença, decaída em
catadupas de sons, e rasgamos como
arqueiros as cordas delicadas para a
fixar tão breve, tão fina e destilada
como rosa, rebrotando a vida dos
nossos dedos cansados;

Nunca escreveste para a glória, o que
tinhas no coração devia sair, de cabelos
brancos dizias, só agora é que começo
a aprender; pode ser que tenha talento
para a música, pode ser…





Helena Barbagelata nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1991. É uma artista multidisciplinar, dedicada às artes plásticas, música e letras. Participa em revistas e antologias literárias em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laureada em diversos concursos internacionais. Foi a mais jovem vencedora do “Prémio Poesia e Ficção de Almada” (Edição de 2012), com a obra “O Mar de Todos os Deuses”, atribuído por unanimidade pela Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade de Língua Portuguesa e pela Câmara Municipal de Almada. Tem publicada a obra Soliloquia (Apenas-Livros, 2013).


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