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UM RAMO DE AMENDOEIRA, por Helena Barbagelata

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Fotografia: "Primavera" (2013), por Helena Barbagelata


À minha irmã.

Que vês? Eu vejo um ramo de amendoeira.

Vê, a amendoeira está em flôr, pressagiando a Primavera nos seus botões mais frágeis, como nuvens finas que tremeluzem ao longe numa trama de lavores delicados, cada ano adormecemos sobre a cama de neve que nunca tivemos, sentimos crescer em nós quantos sonhos impronunciáveis, agasalhamo-los com as flores que ela nos vai pousando docemente sobre a nuca.

Trouxe-te as flores de todos os meus amores, ofereciam-me a morte em ramalhetes colhidos, chegava com as mãos tingidas do sangue carmim das rosas, presenciávamos a irrigação da vida incerta nos seus corpos amputados, dizia-te os meus amores vieram mortos, os lábios entreabertos exalando sopros moribundos, esperando lentamente a caída do último párpado perfumado.

Vê, que ramagem tão folgada e verde quebrando o vidro azul dos céus, nas tardes intermináveis de estio fazem dela o seu repouso, as aves cantadeiras, os harmónios que vêm chorando a samaritana, os amoladores soltando a ondulação arrepiada de um assobio, saboreamos a merenda das tardes quentes sobre a esteira da sua sombra, dividimos entre os sete ramos as alegrias e os frutos.

Trouxe-te as flores de todos os meus amores, eu só amava as árvores, um amor como o teu interminável, para além da morte, para além de nós, como a amendoeira do largo, das áleas brancas caiadas de infância, que me espera sempre mesmo quando não volto, que conhece de mim todos os rostos, até os que não sei.

Vê, as amêndoas em cachos e os poentes amaciados de Setembro prenhes de saudade, um senhor de cabelos brancos vem varar as sementes maduras no vagar da manhã, então sabemos que chegou o outono, a terra embebida do odor amargado e sóbrio dos frutos, confundido entre os leitos húmidos dos nossos olhos e as primeiras chuvas.

Trouxe-te as flores de todos os meus amores, e nada restou senão a mirra esmaecida das pétalas como lembrança antiga, nunca amei naturezas mortas, alguém disse o coração do homem é como a raiz de uma árvore, amparando silente o peso de todas as estações.

Vê, o tronco despido e indefeso da amendoeira, só lhe restam os braços minguados como aparas finas, é assim mais bela, com o corpo nu em desafio aos temporais, não verga nunca a alma à passagem do vento, resistente permanece como o amor em nós.




Helena Barbagelata nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1991. É uma artista multidisciplinar, dedicada às artes plásticas, música e letras. Participa em revistas e antologias literárias em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laureada em diversos concursos internacionais. Foi a mais jovem vencedora do “Prémio Poesia e Ficção de Almada” (Edição de 2012), com a obra “O Mar de Todos os Deuses”, atribuído por unanimidade pela Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade de Língua Portuguesa e pela Câmara Municipal de Almada. Tem publicada a obra Soliloquia (Apenas-Livros, 2013).

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