O encontro com a poesia espiritual de Francisca Júlia Da Silva (1871-1920) é revelador de como as nomenclaturas na literatura são frágeis, levando-nos muitas vezes, consequentemente, a leituras insuficientes de autores que têm obras muito mais abrangentes do que as referentes escolas literárias em que são postos cada um. Francisca Júlia, por exemplo, é considerada uma das grandes parnasianas brasileiras, tendo sido considerada do mesmo nível da tríade em certa época. Famosa por sua poesia “impassível”, “marmórea”, grande parte de sua obra, porém, tem um trecho demasiadamente espiritualizado - inclusive com uma percepção muito aguçada do Mistério - para que a poetisa fosse, tão somente, classificada de parnasiana. Até hoje, quando são analisados os seus poemas, vemos sempre presentes os sonetos “Dança das Centauras” e “Os Argonautas”, de um parnasianismo evidente; e é portanto, diante dessa lacuna acerca do trecho de sua obra que se pode denominar de simbolista, é que se faz muito necessário esse pequeno estudo.
Foto: A jovem Francisca Júlia Créditos: Sacrário das Plangências |
A obra de Francisca Júlia, excluindo-se as Poesias, reunidas por Péricles Eugênio da Silva Ramos, em 1961, constitui-se em Mármores (1895), Livro da Infância (1899), Esfinges (1903) e Alma Infantil (1905), escrito em contribuição com o seu irmão Júlio César da Silva, além de uma segunda edição de Esfinges, publicada em 1920. Na primeira edição deste último livro, Francisca Júlia retirou sete composições de Mármores, mas acrescentou outras quatorze. Essas quatorze têm produção, muitas vezes, anteriores às obras essenciais do Simbolismo brasileiro. Como notou Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, “no ano em que Cruz e Sousa ainda nada produzira da matéria que constituí os seus livros geniais, e que são os maiores do Simbolismo na Latino-América; no mesmo ano (1890) em que Alphonsus de Guimaraens publicava na imprensa paulistana poesias depois integrantes dos seus insignes primeiros livros, Francisca Júlia revelava acentuadamente a tendência decadentista e mesmo simbolista que, como correnteza subterrânea, sumiu ao impacto da voga provinda de Heredia mais ainda do que de Leconte ou Gautirer (...)”. É bem claro, portanto, que toda a produção decadentista e simbolista de Francisca Júlia foi anterior à sua produção parnasiana, que foi a que lhe deu fama, mas de forma alguma a sua poesia espiritual e sugestiva é menor.
Se em Mármores a sua poesia é desse parnasianismo quase francês citado por Muricy, mas com grandes momentos para além de uma simples descrição positivista (os versos de Musa Impassível e Aurora são memoráveis), o mesmo não acontece nas Esfinges. É um livro que, iniciando-se pelo título, já coloca o leitor em uma esfera de deciframento do inefável, dessa doce percepção misteriosa dos questionamentos herméticos por meio da qual tantos simbolistas se extasiaram.
No que se refere ao aspecto formal, porém, principalmente nos sonetos, Esfingfes é, basicamente, um livro parnasiano; talvez constituindo-se um caos temático sob a tutela da forma. Vejamos, pois, o exemplo de Noturno:
NOTURNO
Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula de incenso.
E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.
Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha...
E enquanto paira no ar esse rumor de calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.
Não obstante a construção parnasiana do verso, o vocabulário (formado, por exemplo, pelas palavras “saltério”, “mortalha”, “estrige”, “lausperene”...) é tipicamente simbolista. A atmosfera misteriosa e mística do soneto coloca Francisca Júlia um passo à frente das celebres composições do Parnasianismo brasileiro – que também, em sua tríade, teve momentos de influências do Simbolismo (como no Tarde, de Olavo Bilac).
Assim como no Decadentismo francês, o Simbolismo brasileiro encerrou certa obsessão pela imagem crepuscular, que para ambos os movimentos, no final das contas, constituiu-s de um símbolo não somente da transição da tarde para a noite, mas do “doce crepúsculo das cousas”, em verso de Raul de Leoni, ou seja, de uma percepção de finitude geral, de mistério que o clima de “fim do século” aportava fortemente em todos os poetas da época. E, de Francisca Júlia, eis um exemplo claríssimo dessa característica:
CREPÚSCULO
A Maria Clara da Cunha Santos
Todas as cousas têm o aspecto vago e mudo
Como se as envolvesse uma bruma de incenso;
No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,
Precinta do céu calmo a cariz do veludo.
Tudo: o campo, a montanha, o alto rochedo agudo
Se esfuma numa suave água-tinta... e, suspenso,
Espalhando-se no ar, como um nevoeiro denso,
Um tom neuro de cinza empoeirando tudo.
Nest'hora, muita vez, sinto um mole cansaço,
Como que o ar me falta e a força se me esgota...
Som de Ângelus, moroso, a rolar pelo espaço...
Neste letargo que, pouco a pouco, me invade,
Avulta e cresce dentro em mim essa remota
Sombra da minha Dor e da minha Saudade.
O “Crepúsculo” de Francisca Júlia é, talvez, um dos mais interessantes exemplos de uma metafísica desenvolvida na poesia brasileira. Tudo, à visão do sujeito-lírico, têm o mesmo aspecto “vago e mudo” – a mesma essência, que, apesar da aparênciasemelhante, não nos parece imutável. E o sujeito-lírico, como espectador, naturalmente é participante dessa grande meio sugestivo, pois a sombra da sua “Dor” e de sua “Saudade” – essências interiores – crescem a partir da observação da essência exterior – a essência de “todas as cousas”, ou seja, a essência exterior mantém de certa forma um poder sobre a essência interior do sujeito-lírico, que transfigura-se.
Também de Esfinges, o poema “Mudez” foi considerado por Mário de Andrade um dos melhores poemas da literatura brasileira, o que não deixa de ser matéria de relevo, pois que em muito se crê, atualmente, que o Modernismo rejeitou tudo que havia de literatura no Brasil antes dele, o que é falacioso, pois rejeição foi posterior ao movimento modernista. Vejamos, enfim, o poema de Francisca Júlia:
MUDEZ
Já rumores não há, não há; calou-se
Tudo. Um silêncio deleitoso e morno
Vai-se espalhando em torno
Às folhagens tranquilas do pomar.
Torna-se o vento cada vez mais doce...
Silêncio... Ouve-se apenas o gemido
De um pequenino pássaro perdido
Que ainda espaneja as suas asas no ar.
Ouve-me, amiga, este é o silêncio, o grande
Silêncio feito só de sombra e calma,
Onde, às vezes, noss'alma,
Penetrada de mágoas e de dor,
Se dilata, se expande,
E seus segredos íntimos mergulha...
Prolonga-se a mudez: nenhuma bulha;
Já se não ouve o mínimo rumor.
Esta é a mudez, esta é a mudez que fala
(Não aos ouvidos, não, porque os ouvidos
Não conseguem ouvir estes gemidos
Que ela derrama, à noite, sobre nós)
À alma de quem se embala
Numa saudade mística e tranquila...
Nossa alma apenas é que pode ouvi-la
E que consegue perceber-lhe a voz.
Escuta a queixa tácita e celeste
Que este silêncio fala a ti, tão triste...
E hás de lembrar o dia em que tu viste
Perto de ti, pela primeira vez,
Alguém a quem disseste
Uma frase de amor, de amor... ó louca!
E que, no entanto, só mostrou na boca
A mais brutal e irônica mudez!
“Mudez”, cuja perspectiva formal já demonstra uma liberdade muito além da comumente oferecida na poesia da época, reconstrói o mistério como perspectiva sensorial. É de uma musicalidade finíssima, fluida, lembrando-nos alguns dos pós-simbolistas (Hermes Fontes, por exemplo) que se utilizariam dessa ebriedade pulsante da música – independentemente da métrica – como meio de atingir novas perspectivas na poesia.
Sob essa perspectiva, é-me evidente que graças ao tratamento melódico dos Simbolistas (desde a França), a poesia se tornou a arte mais próxima à música que conhecemos, além de ter desenvolvido – por consequência da profundidade alegórica de seus símbolos - seu conteúdo pictórico a um nível que precedeu, em termos ultra-sensoriais, os Surrealistas. Poesia, a partir daquele momento, tornou-se música – e finalmente tinha abraçado a plenitude de todas as Artes e sentidos.
E acerca ainda de mudez, eis o que Silveira Neto, simbolista paranaense, disse acerca dessa obra:
“Em Mudez, página que nos fala mais intimamente, ela soergueu por um momento o véu da sua impassibilidade litúrgica para dar-nos mais de perto o coração, num velado queixume” (em “O Norte”, Dezembro de 1920, citado por Andrade Muricy no "Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro")
Francisca Júlia, em sua poesia Simbolista (à qual ela nomeou de “poesia nefelibata”, ou seja, a poesia “de quem anda nas nuvens”), foi essencialmente de influência católica, apesar de ter se pronunciado, certa vez, a favor das crenças da cabala, ou até de feitiçarias (segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos, ela chegou a defender publicamente a tese de corpos astrais) – o que não é de todo estranho ao gosto de quem se aproximou do ambiente intelectual simbolista. Um dos claros exemplos dessa perspectiva espiritual e católica que, de certa forma, era até natural, já que a vivência provinciana em São Paulo trazia exatamente essa perspectiva pia, é esse belo “De Joelhos”:
DE JOELHOS
A Santa Teresa
Reza de manso... Toda de roxo,
A vista no teto presa,
Como que imita a tristeza
Daquele círio trêmulo e frouxo...
E assim, mostrando todo o desgosto
Que sobre sua alma pesa,
Ela reza, reza, reza,
As mãos erguidas, pálido o rosto...
O rosto pálido, as mãos erguidas,
O olhar choroso e profundo,
Parece estar no Outro-Mundo
De outros mistérios e de outras vidas...
Implora ao Cristo, seu Casto Esposo,
Numa prece ou num transporte,
O termo final da Morte,
Para descanso, para repouso...
Salmos doridos, cantos aéreos,
Melodiosos gorjeios
Roçam-lhe os ouvidos, cheios
De misticismos e de mistérios...
Reza de manso, reza de manso,
Implorando ao Casto Esposo
A Morte para repouso,
Para sossego, para descanso
D'alma e corpo, que se consomem,
Num desânimo profundo,
Ante as misérias do Mundo,
Ante as misérias tão baixas do homem!
Quanta tristeza, quanto desgosto
Mostra n'alma aberta e franca,
Quando fica, branca, branca,
As mãos erguidas, pálido o rosto...
O rosto pálido, as mãos erguidas,
O olhar choroso e profundo,
Parece estar no Outro-Mundo
De outros mistérios e de outras vidas...
A musicalidade obtida nesse poema – advinda de uma repetição de vocábulos e de uma métrica menor – afasta-se claramente do arquétipo parnasiano que se criou sobre a poetisa, principalmente no que se refere à fluência das imagens e da música dos versos, que parecem se encaminhar sem o entrave incômodo dos poucos enjambemants presentes, muito por consequência dos ritmos velozes das sentenças.
Também de inspiração católica, “Adamah” é um dos melhores sonetos do estilo compostos por Francisca Júlia. Como anotou Péricles Eugênio, o vocábulo vem do Gênese, e eis o que expõe: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e soprou em seus narizes o fôlego da vida”. Vejamo-lo:
ADAMAH
A Júlia Lopes d'Almeida
Homem, sábio produto, epítome fecundo
Do supremo saber, forma recém-nascida,
Pelos mandos do céu, divinos, impelida,
Para povoar a terra e dominar o mundo;
Homem, filho de Deus, imagem foragida,
Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,
Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,
Para ser o primeiro a conhecer a vida;
Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada
Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas
De pássaros saudando a primeira alvorada,
Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas
O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada
No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...
Francisca Júlia, em uma época extremamente machista e paternalista, foi comparada com a tríade parnasiana, extremamente respeitada pelos simbolistas e também pelos modernistas (muitos dos principais participantes da Semana de 1922 foram ao seu enterro, no Cemitério do Araçá, em São Paulo), e é portanto que a sua figura configura-se não somente importante no sentido poético, mas também em um sentido social – já que superou as tremendas barreiras do preconceito para alcançar um reconhecimento que poucos tiveram à época (o que não impediu a sociedade literária de levantar intransponíveis barreiras à poetisa; um exemplo é o do debate acerca de sua possível nomeação para a Academia Brasileira de Letras, totalmente frustrada, pois aquele recinto era então exclusivo para homens, e não tratava do mérito literário).
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"Musa Impassível", de Víctor Brecheret - já na Pinacoteca do Estado de SP Créditos: Sacrário das Plangências |
Se hoje, muitas vezes, a figura de Francisca Júlia é mais lembrada não por sua obra, mas pela estátua A Musa Impassível que Victor Brecheret erguera para o seu túmulo (em virtude da lei proposta por Freitas Valle, poeta simbolista) - e que hoje está na Pinacoteca do Estado de São Paulo -, é por consequência de sua produção pequena, defende Péricles Eugênio da Silva Ramos, o que prejudicou a fixação da imagem de seu gênio na Literatura Brasileira. Mas há um grande problema no argumento de Péricles, já que a quantidade de produção nunca foi – ou deveria ser – medição de perspectiva qualitativa. Ora, Francisca Júlia, em seus sessenta e poucos poemas publicados - sem contar as traduções - já vai além dos quarenta e oito poemas de Camilo Pessanha (1867-1926), por exemplo (sem comparações entre os autores, é evidente), que constavam em sua Clepsidra, lançada em 1920, que fora o seu único livro e que, não obstante do pequeno tamanho, marcou história na Literatura Portuguesa. Aliás, que se diga, no Simbolismo se tornou comum a publicação de livros com uma quantidade pequena de poemas – além da muito comum tiragem limitada -, fazendo com que fenômenos como os de Pessanha, Francisca Júlia, enfim, não se configurassem de forma tão rara com autores circundantes ou participantes do movimento.
O que ocorreu, em minha visão, foi que, com o advento do Modernismo, o Brasil criou a tendência de desvalorizar os autores precedentes a 1922, principalmente aqueles que tinham envolvimento com o Parnasianismo (que foi, na época, o movimento combatido). Mesmo que se saiba que poucos poemas espirituais são tão brasileiros quanto “Mudez”, em sua visão sensorial por meio da observação da natureza – representada por um brasileiríssimo pomar -, crê-se, por meio de uma educação poética falha (muito baseada no que vestibulares pedem, não no que o conhecimento constitui-se), que a poesia brasileira, na grosseira ideia de uma arte de “puro-sangue”, iniciou-se de fato em 1922. A ideia, portanto, de que a pequena produção de Francisca Júlia fizesse com que a sua produção se esquecesse é falaciosa: o que há, é evidente, é um desnecessário e anacrônico continuísmo da necessidade de ruptura com os movimentos antecedentes ao grupo Modernista; ainda paira sobre nós, no Século XXI, com tantos recursos digitais e obras antigas disponibilizadas, a perspectiva do pecado quando tratamos de poesia considerada também como construção formal, focada na melodia, no ritmo e, sobretudo, no que podemos chamar de imaginação trabalhada por meio desse engenho que é a poesia.