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O GAVIÃO E O GUERREIRO - 1 conto mallarmirim para o natal

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Yanomami com Beija-Flor - Aldeia Demini RR , 1991
Rosa Jandira Gauditano



“Todas as riquezas do mundo não valem um bom amigo.”
Voltaire



Quando eu era criança, a minha família mudou-se para um novo bairro de Curitiba. Era um bairro diferente de onde eu havia vivido até os meus dez anos de idade. Lá tudo parecia novo. Essa foi a minha primeira impressão. Aos meus olhos, tudo parecia perfeito, menos ao meu coração.
Meus pais estavam felizes, nunca os vi tão entusiasmados. Eles diziam sempre que a nova casa era o maior acontecimento da vida deles depois do meu nascimento. Claro que ouvir isso me deixava emocionado, mas por outro lado eu estava triste porque tinha acabado de deixar o prédio onde havia nascido e morado por uma década.
Eu sabia que não iria mais brincar com os meninos que conhecia desde pequeno, embora eu soubesse que poderia vê-los de vez em quando, mas as coisas não seriam iguais.
Finalmente nos mudamos e eu não demonstrei aos meus pais a tristeza que senti ao deixar o nosso antigo prédio. Eu fiz de conta que me sentia como eles e aos poucos fui tentando me adaptar à rua sem saída e de casas bonitas onde fomos morar.
Demoraram algumas semanas para que eu conhecesse um garoto, já que eles formavam um grupo e se reuniam sempre para jogar em suas casas.
Um dia eu fui convidado para o aniversário de um deles e me senti completamente deslocado, mas fiquei até o fim, afinal eu tinha de ser educado. A casa desse menino era bem perto da minha, e quando estávamos nos despedindo, ele me convidou para, no dia seguinte, assistir a um filme na enorme sala de televisão que havia na sua sala.
Eu aceitei o convite e, no outro dia, eu estava lá e assisti ao filme. Era engraçado como eu olhava para a tela da televisão e pensava no antigo prédio onde morava. Era uma saudade que eu não podia contar para ninguém, ela ficava dentro do meu peito dia e noite. Com o passar do tempo, eu conheci os meninos e meninas da rua inteira. Eu me esforçava para me enquadrar, para que a amizade entre nós se estreitasse.
Eu queria muito me sentir em casa de novo, tinha tudo que um garoto poderia querer e além de tudo estava conhecendo outros garotos, mas por algum motivo, parecia que faltava alguma coisa.
Mesmo me sentindo assim, eu continuei tentando me inserir naquele novo ambiente com todas as minhas forças. Meus pais faziam tantos planos, arrumavam os móveis novos sem parar, beijavam-se no jardim, sorriam por nada.
Eu me sentia culpado por não conseguir me sentir feliz como eles. Até que em uma tarde ensolarada, um menino chamado Carlos me chamou para jogar no seu Playstation e conhecer a sua coleção de carrinhos de controle remoto. Eu fui. A casa dele era uma das maiores da rua e tinha um jardim que, de tão grande, parecia um bosque.
Todos os meninos que moravam naquela rua estavam lá, eles se revezavam naquele jogo, que durava mais de três horas. Eu lembro que fiquei com dor nas costas de tanto ficar sentado, mas finalmente Carlos nos chamou para ir para fora.
Estávamos na varanda, onde ele havia colocado em fileira os seus carrinhos de controle remoto. Olhando para a varanda, que circundava a sua casa, notei que lá no fundo do jardim tinha uma casinha de madeira. Ela era pequena e muito rústica, parecia pertencer às fábulas antigas, e ao seu redor tinha muitas araucárias.
Por um momento, Carlos fez uma manobra no seu carrinho e passou rapidamente por mim, chamando a minha atenção. Eu o segui com os olhos, mas por pouco tempo, depois voltei a olhar para a casinha.
Dessa vez vi um menino correndo entre as araucárias próximas à casinha e fiquei surpreso.
– Quem é aquele menino, Carlos? – perguntei apontando na direção da casinha de madeira.
– Ah! É o filho do caseiro, o Anajé. – Carlos respondeu sem tirar os olhos do seu carrinho.
– Anajé? É o nome dele?
– Sim.
– Mas eu nunca o vi na rua brincando.
– Ele nunca quer sair desse quintal. Sei lá, eu o acho meio estranho! Já o chamei para brincar de um monte de coisas, mas ele sempre arranja uma desculpa e volta para lá pra subir na sua casa sobre as árvores.
– Você já foi a casa sobre as árvores dele? – perguntei curioso.
– Não. Tenho medo de altura e além do mais a minha mãe me proibiu de ir para aquela parte do jardim, ela diz que é cheio de bichos e eu também não gosto muito de me sujar.
Enquanto Carlos falava, eu olhava para o menino de nome estranho e algo dentro de mim se inquietava. “Como é possível que ele prefira brincar sozinho? Todos nós queremos fazer parte de um grupo, por que ele não?”.
Naquele dia eu fui embora, mas não esqueci as palavras do Carlos e comecei a observar o Anajé todas as vezes que ia à sua casa. Parecia que estávamos em mundos completamente diferentes porque não tínhamos tempo para perder subindo em árvores.
Ele, ao contrário de nós, estava sempre correndo e saltando, parecia não querer perder tempo e não nos via também, porque estava sempre em movimento. Nós, que nem de bicicleta andávamos, parecíamos muitos anos mais velhos do que ele, mas tínhamos a mesma idade.
Em uma manhã, enquanto o meu pai dirigia o seu carro, levando-me para a escola, eu vi o Anajé caminhando a pé e sozinho. Depois eu descobri que ele ia para a escola pública, que ficava a alguns quarteirões da nossa casa. Ele caminhava olhando para o chão e de vez em quando chutava pedrinhas.
Naquele mesmo dia à tarde, eu fui à casa do Carlos levando comigo uma bola de futebol. Havia vários meninos da nossa rua lá, mas nenhum deles queria jogar futebol, todos estavam sentados jogando em diferentes computadores.
Então eu fui sozinho para o jardim e comecei a jogar a bola na direção da casa do Anajé, ele estava lá, como sempre sozinho e correndo.
A bola bateu na árvore próxima dele, ele levantou o rosto e me viu, no mesmo momento sorriu para mim.
– Oi! – eu disse. – Me chamo Martino e moro aqui há pouco tempo.
– Eu sou o Anajé. Moro aqui faz dois anos. De onde você veio?
Ele me perguntou enquanto corria até a bola de futebol para depois chutá-la na minha direção. Eu a chutei de volta para ele.
– Eu morava em outro bairro, distante daqui, morava em um prédio, era diferente, mas estou começando a gostar de morar em uma casa.
Ele bateu com o pé na bola, dessa vez com força, a bola acabou passando por mim e indo parar no fundo do quintal da casa dele. Nós dois corremos atrás dela e pela primeira vez eu pude ver a casa dele de perto.
Ela era velha mesmo, a madeira já estava desbotada e já havia perdido a sua cor original. No fundo do quintal, tinha muitas árvores e uma imensa horta, foi bem lá no meio dela que a bola foi parar.
– E você, Anajé, onde você morava antes?
Ele pegou a bola entre as mãos e a jogou na minha direção, mas eu não a peguei, deixei que rolasse no chão, queria ouvi-lo.
– Eu vivia em uma aldeia, uma reserva indígena, bem distante de Curitiba.
– Nossa! – exclamei sem querer, tinha ficado surpreso, na verdade nunca havia passado pela minha cabeça que ele fosse um índio.
– Você vivia em uma tribo?
– Sim. – ele respondeu e começou a subir em uma árvore. Eu tentei fazer o mesmo, mas não foi nada fácil para mim no começo. Caí da árvore várias vezes, mas não queria desistir, não queria que ele soubesse que eu jamais havia subido em uma árvore em toda a minha vida. Finalmente eu consegui e me aproximei dele.
– E como era lá na sua tribo? – perguntei ainda mais curioso.
– Era muito diferente daqui. Lá eu era livre de verdade, mas como o meu pai diz: “Uma pessoa que não sabe ler e escrever não é livre de verdade neste mundo de agora”. Por isso acabamos nos mudando para a cidade, para que eu pudesse estudar.
Ele desceu tão rápido da árvore que eu jurava que tivesse voado.
– Deve ser um lugar bonito lá na sua tribo. – eu disse, descendo com todo o cuidado da árvore para não me arrebentar no chão.
– Você quer ver a minha tribo? – o Anajé me perguntou.
– Claro! – eu respondi. – Mas como?
– Lá em cima, na minha casa na árvore! – ele disse isso e saiu correndo na direção da árvore mais alta do quintal. Tinha uma escada feita de cipó que nos conduzia até ela.
Eu demorei um pouco para subir porque também estava morrendo de medo de cair lá de cima, mas finalmente consegui alcançar o Anajé e entrar na casa na árvore.
– Que irado! – eu disse ao ver aquele espaço cheio de arcos, flechas e outros objetos indígenas.
– São coisas que eu trouxe da minha tribo. Eu gostava muito de tudo isso, mas aqui não posso usar. Você vê os desenhos na parede? Essa é a minha tribo.
Só então eu conseguia perceber os desenhos que cobriam as paredes da casinha, desenhos de uma floresta e no meio a aldeia onde ele morava. Havia também desenhos de rios, cachoeiras, macacos, araras e outros bichos.
– Você que desenhou tudo isso, Anajé? – perguntei impressionado.
– Sim, desde que aprendi a desenhar com lápis de cor, sempre desenho. Eu pego as folhas do meu caderno e tenho alguns lápis que a professora me deu. Já ler é muito mais difícil...
– Por quê?
– Porque eu comecei a estudar em uma escola há dois anos e é muito difícil para mim, ainda estou aprendendo a escrever e a ler. Na minha escola não tem biblioteca, e o meu pai e a minha mãe não compram livros para mim. Na verdade eles nem sabem falar português direito, eles se envergonham de sair de casa para comprar as coisas.
Quando ele disse isso, eu me senti muito envergonhado porque me lembrei de todos os livros que os meus pais haviam comprado para mim sem que eu tivesse ao menos aberto uma única página. Lembrei-me deles amontoados e esquecidos na estante do meu quarto e lembrei-me das palavras da minha mãe:Como eu gostaria de ver você lendo um pouco de vez em quando, meu filho.
– Acho que eu posso o ajudar, Anajé, posso trazer alguns livros que eu tenho e quem sabe pedir mais alguns para os meninos que moram aqui. Acho que eles adorariam vir aqui em cima conhecer a sua casa na árvore.
– De verdade? – o Anajé perguntou com os olhos brilhando.
– De verdade. – eu respondi e comecei a descer as escadas dizendo: – Eu volto amanhã à tarde com os primeiros livros.
Naquela mesma noite eu peguei todos os livros que tinha lido na escola e que não usaria mais e os coloquei em uma caixa. Liguei para os meninos da rua e perguntei se eles tinham livros velhos que pudessem ser doados, todos tinham.
Assim, na tarde do dia seguinte, eu passei na casa de cada um deles, recolhi os livros e os convidei para que me ajudassem a levá-los para a casa da árvore do Anajé.
Ele estava me esperando lá em cima e quando chegamos com todos aqueles livros, foi uma festa. Sentamos em um círculo e pegamos livros que haviam sido de cada um de nós e os folheamos, lemos, demos risadas e conversamos muito.
O Anajé ficou muito contente com os livros e os organizou em cestas de vime que haviam sido feitas pela sua mãe.
Eu achei um livro de significados dos nomes e disse para o Anajé que o seu nome significava gavião na língua indígena.
– Nossa! Por isso que eu gosto de ficar aqui em cima.
– E o seu nome, o que significa?
Eu procurei o significado do nome Martino e o li:
– Significa guerreiro e é um nome italiano.
Naquela tarde foi o início de um novo tempo de descobertas na minha vida. Eu e o Anajé passamos a nos reunir para brincar, jogar futebol, subir nas árvores, para comer as frutas e correr na chuva. Os outros meninos também participavam, mas só quando fazia sol, se o tempo mudasse, preferiam ver televisão, jogar vídeo-game, ficar no computador ou em qualquer um dos outros jogos eletrônicos.
Eu ainda brincava com eles, mas preferia a companhia do Anajé, ele não dependia de objetos para usar a imaginação, ele simplesmente fazia as coisas ao seu modo, sem os manuais colocados dentro de caixas.
Pela primeira vez eu não sentia saudades do prédio onde eu havia vivido, pela primeira vez pude compartilhar com os meus pais a alegria de estar naquele lugar.
A casa na árvore se tornou o nosso lugar preferido e nela ficávamos sempre em meio aos livros, pelos quais eu acabei me interessando muito mais com o passar do tempo.
O Anajé tinha muitas dificuldades escolares, cometia muito erros de escrita e às vezes até ao falar. Eu passei a ajudá-lo nos deveres de casa e o incentivava a ler em voz alta.
Ele melhorou muito, mas eu melhorei ainda mais, porque aprendi a ler de verdade naquela casinha sobre a árvore. Aprendi a dar valor às coisas que eu tinha dentro da minha casa. Aprendi a ser um garoto que não precisa de eletrônicos o tempo inteiro para preencher o seu tempo de ser criança.
No Natal daquele primeiro ano na nova casa, eu pedi para os meus pais se poderíamos convidar a família do Anajé para participar da ceia conosco. Os meus pais disseram que sim.
Quando a noite de Natal chegou, jantamos todos juntos, e eu não pude acreditar quando o meu pai entregou uma bicicleta para o Anajé. Meu amigo ficou muito feliz!
Os pais do Anajé me deram um arco e uma flecha e me perguntaram se um dia eu gostaria de ir até a tribo deles. Eu disse que sim.
O meu presente para o Anajé foi um estojo de lápis de cor com cento e vinte cores e um caderno de desenho grande que eu havia comprado com o dinheiro da minha mesada.
O Anajé me deu de presente um caderno cheio de desenhos de gaviões e guerreiros indígenas que ele mesmo havia desenhado, o caderno tinha muitas páginas em branco e foi nessas páginas que eu escrevi a história que você acaba de ler.
Foi o melhor Natal da minha infância.




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