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SENHORITA K: POEMAS DO LIVRO DE MARCOS BASSINI + RESENHA!

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CONSELHOS DA SENHORITA K AOS FILHOS


           quebre uma perna
segure a perna quebrada
e perceba a péssima matéria-prima
que nos mantém erguidos

              apaixone-se pela pessoa errada
e mesmo sabendo que é errada, insista
lembre dela, sorrindo
na velhice

                            outra coisa:
deite com quem não confia
repouse a cabeça no mesmo travesseiro
                                                      e aguarde
(sentindo a lâmina cutucando a coluna)
o sono

troque de emprego
                           de preferência procure aquele
em que os colegas não vão bem com sua cara
      torçam pelo seu fracasso
ou seu chefe seja um tirano:
                 aceite o café na hora da entrevista
escolha a empresa que lhe servir xícara fria
ou copo plástico

    ah, ande por uma rua escura
pare de vidros abertos no sinal
                                       acampe numa praia chuvosa
percorra uma trilha escorregadia até ser assaltado
tema pela sua vida
        pela do amigo
                                            pela do seu amor
e sinta mais falta das fotos que da câmera

é isso:
escreva o que acabou de ler
          num pedaço de papel
esqueça dentro do bolso da calça
         que colocou para lavar e se toque:
a vida não é feita só de bons conselhos
 



SETE CORDAS


      sete cordas me prendendo ao espaço
me salvando lá do chão que de tão longe
até parece que inexiste

         são seis, melhor dizendo, seis cordas me seguram
impedindo o debande, a rebeldia, o esforço da gengiva
                                                             em vão roendo o aço

quer dizer, elas são cinco
cinco linhas me prendendo ao titereiro
                             me fazendo de palhaço
me botando pra coçar (um mico) a bunda pra plateia

quatro riscos de um quadrado (me olho no espelho?)
encerrado em dimensão que é de segunda, protegendo de ninguém
                                                                                         meu curto espaço

três, agora, arames impedindo a chegada de uma farpa
                                                      que me estenderia a mão
só pra ver se eu confundiria uma peninha com amor

    duas, é o que vejo, apenas duas, apenas molas
 me jogando morro abaixo pra fotografar o grito
oscilando queda e medo
(de cair ou de ser livre?)

a vida, enfim, em uma linha, resumida, por um fio
                            e a tesoura voadora errando o alvo




SENHORITA K DIZ ADEUS


os livros não diziam que seria assim
nem os dicionários1
as flores também não diziam
                 nem o alerta do pai

                                      as músicas insistiam, repetiam
mas não passavam de frases arranhadas num sulco:
amor, amor, amor, amor...

e se dissessem vento, chuva, ácido, ferro
seria diferente?

a palavra nunca toca naquilo que a define

                                            talvez porque o objeto
(mesmo um filho, mesmo o que nunca nasceu)
sempre venha antes do nome
e nosso hálito seja imperfeito diante do sopro Dele: faça-se!

                                  por isso as folhas, os versos
junto das cascas de batata, de cebola, de maçã

por isso a palavra sonho, a palavra isso

 a palavra quero descansando no lixo
junto da palavra sim, da palavra juro
  da palavra felizes
da palavra sempre


1ah, dicionários... / o significado de tudo / a explicação de nada




POR QUE ESTE POEMA?


(enquanto escrevo este poema
             um homem é asfixiado
com um saco plástico)

o tempo deste poema é antigo
era defasado antes já
do final desta estrofe

o murro deste poema
quebra os ossos da mão que o desfecha

a causa deste poema é injustificável
          inconsequente
o autor deste poema

(este poema não vale
a tinta e o papel que
lhe servem de berço)

a morte deste poema




 é agora


SENHORITA K DÁ MUITO VALOR AO PLÁSTICO


ai, disse o copo plástico quando lhe derramaram café pelando

Senhorita K não se surpreendeu: sabia que a evolução é  inexorável e que o plástico, graças à convivência com seres humanos, finalmente começava a se tornar consciente1, merecendo todo nosso cuidado, amor e atenção

passou a usar toda a mesada para comprar objetos daquele material

no faqueiro, sumiram2 os talheres de prata: lá estão, agora, facas, garfos, conchas e colheres, todos  de plástico bem branquinho

até hoje finge tirar música de copinhos que deram para exigir serem colocados na cristaleira 


1lembre-se: humanidade e consciência / não são sinônimos // 2e: é o lobby de certas palavras, chamando sinônimas de gírias / que faz determinados termos / desaparecerem do dicionário



 
TRÊS POEMAS VIAJAM PELO TRADUTOR ONLINE


RIO- SINGAPURA - NOVA DELHI - BALI - RIO
                                                                   (para Beth)
IDA:

até você
eu não conhecia nada

além da barraca de cachorro-
     quente, além do cachorro
além

até você sumir
até você?


VOLTA:

você:
eu não sei nada

carrinho de cachorro
      além de cachorros-quentes
além

a menos que você dê
                             você






RIO - BUENOS AIRES - RIO
                          (para Brígida)
IDA

nossa maior fronteira
             não é a língua

é a saudade
da boca

VOLTA

nossa maior fronteira
          - não a língua -

é o desejo:
boca







RIO - DUBAI - CAIRO - RIO
                           (para Carina)
IDA

qual a distância
entre américa e áfrica?
               eu quis saber

por quê se afastaram?
você pergunta

VOLTA

essa distância
entre américa e áfrica

eu queria saber:
por que é longe?



 O ESPELHO INFINITO 


             um dos problemas do espelho infinito
é que para se captar todo infinito do espelho
é necessária uma mínima curvatura com o corpo
   e esta, ao produzir infinitude, causa um efeito1
que é:

as infinitas fatias de quem se olha
adquirem uma forma elíptica que
após infinitas voltas
na última curva
          passam a refletir
cinquenta anos depois
não mais a elipse
mas o que aquele observador foi
cinquenta anos antes
                  fazendo com que
                  aquele que estiver defronte ao espelho2
(o antigo observador (curvado) ou o novo (reto))
veja um fantasma

outro problema
é que dificilmente um espelho infinito
                             dura os tais cinquenta anos
para que a primeira afirmação se comprove

paradoxo comum a este espelho
que também nos reflete3


1dizem que cientistas húngaros / acabam de isolar / efeitos sem causa // 2mesmo os espelhos comuns / só refletem aquilo que fomos / uma fração de segundo antes //3a primeira estrofe não conversa com a segunda



 
CAIXA DE SUGESTÕES

DA SENHORITA K


o nariz no lugar dos pés
           não substituindo:
junto ou debaixo
para reparar mais no
        que atira ao solo

os olhos no lugar das mãos
  ou de um dos dedos
qualquer brutalidade:
                    a cegueira

      os intestinos seriam a pele
para o constrangimento fazer
da promessa obrigação:
não comer qualquer bobagem

as costelas, colocaria
no couro cabeludo:
menos cuidado com os cabelos
mais com os pulmões

o coração, este
eu manteria exatamente
                          onde está:

      dentro da caixa de vidro
onde ainda se consegue ler:

emergência

 



*    *    *





Senhorita K ( por Carina Destempero)

originalmente publicada no digestivo cultural


A culpa é o que usamos para não assumir nossa responsabilidade.

Isso pode parecer confuso, tendo em vista que muitas vezes usamos essas palavras como sinônimos, mas fato é que elas são quase opostas. A culpa, principalmente aquela que sentimos em relação ao outro, ou aquela que depositamos no outro como motivo de algo que julgamos errado na nossa vida, serve para nos distrair, para nos ocupar. Dizemos que é horrível sentirmo-nos culpados em relação a algo ou alguém, mas muito pior que isso é parar e olhar para o que podemos fazer em relação a isso, e, mais ainda, de fato fazê-lo. Senhorita K, a protagonista do livro de poemas de Marcos Bassini - que é intitulado com o nome da personagem -, sabe bem disso. Uma menina que se sentia culpada em relação à mãe, uma jovem que se sentia culpada frente a uma decisão difícil, uma mulher que culpava o marido pelo seu infortúnio. Lendo, se colocando do lado de fora, é muito fácil dizer, Que absurdo, a felicidade depende de cada um, não podemos colocar a culpa de nossa tristeza nos outros, mas quantas vezes não fazemos isso? Não deixamos de fazer coisas dizendo que é pelo outro - pela mãe, pelo namorado, pelo filho, pelo Bem Maior - e depois nos pegamos reclamando? Aí é que entra a virada de Senhorita K - e, com sorte, a de cada um de nós. Ao perceber que mesmo quando deixo de fazer algo pelo outro, quem deixou de fazer fui eu. Pode parecer algo pesado se você levar, mais uma vez, pro lado da culpa, Como fui idiota, não devia ter pensado em ninguém, etc. Mas se você pensa, Bom, foi uma decisão minha, talvez não tenha sido a melhor, mas fui eu quem a tomei, e posso fazer diferente da próxima vez, isso abre toda uma nova perspectiva, como Senhorita K começa a entender no poema abaixo:

SENHORITA K VOLTA COM UMA FRASE NOS BRAÇOS

uma frase relativamente curta escrita num cachecol:
                                        “você me fez matar meu filho”

foi pendurar num cabideiro, mas lá já tinha:
“deixei de estudar por tua causa”

abriu a porta do guarda-roupa e lá estava:
“larguei meus pais, minha família, meu conforto em nome de nada”

                                                                      o encosto da cadeira era de:
“nunca ninguém fez nada parecido com isso que você fez, canalha”

                                                     o tapete1 ocupava toda sala com a:
“parei de ler, escrever, pintar2, amanhecer, ressuscitar, esculpir
modelar, navegar, desinflar, suspirar”

               na cozinha fumegava uma:
“me arrependi de ter te conhecido”

logo veria, colada à porta, a palavra:
                                                        “rua”

1antigamente usavamos a pele dos animais / subjugando-os para além da morte //2hoje, os tapetes são pinturas / toda casa relembra a vitória / dos tecnocratas, executivos e comerciantes / sobre os artistas


Quando o outro lhe fala Rua, Senhorita K tem que se encontrar com o fato de que o outro talvez não queira mais carregar a culpa que ela lhe impõe. E agora? Seria fácil cair pro outro lado e passar a colocar a culpa, mais uma vez, em si mesma, ou então continuar tentando culpar algum outro. Mas não é isso que acontece. Como vemos no próximo poema, a partir da recusa do outro algo em Senhorita K sofre um abalo, e a questão da culpa perde espaço frente a motivações e escolhas, ou seja, responsabilidade.

SENHORITA K SE PERGUNTA: O QUE SERIA DE MIM SEM ELE?
ELA MESMA RESPONDE:

teria sido quase a mesma que sempre fui

não faria um curso de culinária, mas teria concluído a faculdade talvez em menos tempo

não teria começado por hamlet, mas certamente adoraria shakespeare

não teria ido ao zoológico, mas não deixaria de assistir aquele filme tunisiano que saiu de cartaz

não saberia tanto sobre alienígenas mas falaria uma lingua estrangeira ou, ao menos, falaria um pouco melhor esta por onde tentávamos nos comunicar

não teria perdido tempo indo naquele show lotado em que não vimos o cantor e talvez teria visto o mesmo show pagando um preço até bem justo

não falaria com emoção da índia, mas teria belas fotos do egito

não gostaria de cachaça com canela mas saberia mais de vinhos

não teria perdido tanto tempo pedindo que ele tirasse a barba

não teria que ensiná-lo a se vestir melhor

não me irritaria com os pais de um outro namorado que me ensinaria muita coisa:

a falar mais de quadros e menos de quadrinhos

a entender os macetes de iluminação do film noir em detrimento de todos os detalhes técnicos sobre o reboot do batman

a soltar bolas de sabão em vez de lavar roupa a mão para não desbotar na máquina

a cantar em vez de ouvi-lo cantando

enfim

eu viveria muito bem sem ele

perfeitamente bem sem ele

e por não ter conhecido ele sequer me perguntaria o que seria de mim sem ele

aproveitando, assim, mais o tempo

bem mais o tempo

porque com ele nunca dava tempo pra nada

com ele o tempo voava


Escolhi esses dois exemplos porque são não só poemas lindos, como escritos que nos fazem pensar em muita coisa. Mas a verdade é que o livro inteiro é assim. Um livro de poesia, com uma protagonista, uma história, pontos de virada, meio roteiro, meio romance, e tudo isso com uma pitada de história e política. É um livro que nos faz sentir, sonhar, e, acima de tudo, pensar. Se eu fosse você, corria pra ler logo, pra não precisar se chicotear depois com a culpa de Por que não li isso antes?





Foto: Luca Pierro


*    *    *




Marcos Bassini é redator, roteirista, compositor e, segundo Senhorita K, poeta. A letra K é a primeira de um projeto chamado Glossário. A publicação de Senhorita K pela Editora Patuá foi um prêmio que o autor recebeu do concurso Edith - Só Para Poetas, organizado pela Editora Edith, com direito a lançamento na Balada Literária 2013. É um livro de poemas que se apropria de algumas características dos romances (história, personagens) e filmes (três atos, pontos de virada).







Carina Destemperoé psicóloga, apaixonada por psicanálise e por literatura. Escreve para os sites Confraria dos Trouxas e Digestivo Cultural, entre outros, e é editora de literatura na Caixa Preta Editora.








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