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"nem mesmo mil pás de cal estancariam essa hemorragia"

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Uma tinta que pinte de branco as cores vivas dessa saudade


às vezes planejo meios de emparedar a janela
(Casé Lontra Marques)


Uma tinta que pinte de branco as cores vivas dessa saudade;
paredes brancas amenizam o ambiente; hospitais, asilos e igrejas
demonstram-nos. Onde? onde, ó irmão querido dessa vida de lástima, onde
a tranquilidade? onde a sombra fresca?
onde o pouso da mosca sobre a chaga aberta?
onde o frescor da virgem pura que se despe ao vigário impuro?
onde o mel que nem o deus pode perecer? onde...

É sempre tempo desse mesmo tempo
Insisto nas estações, nos movimentos dos astros, dos barcos...
todo lugar é lugar de solidão
todo olhar é impresso, dado viciado,
espírito bocejante que por uma nesga no túmulo
escapa em noites geladas e
busca o mesmo germe que primeiro roeu
as vísceras expostas de seu cadáver
fruto maduro que teima em voltar à...
metáforas inúteis... a vida um teatro de cenas inúteis
em composições toscas e atores, ah, que atores!
sim, os mais belos, retilíneos e verdadeiros atores!
que amores, todos eles, esses atores, meu deus, ah,
nos bares, bancos, vielas,
estudantes, filósofos, artistas, professores, advogados, proxenetas,
economistas, médicos, geógrafos e putas,
todos os melhores atores
desperdiçados em papéis em gavetas inescrupulosas
que quando se abrem liberam
um fétido odor de carne podre

Ah, antes crer em deus...
mas não, ó jovem de arroubos esteticistas pós-modernos,
não seria esse o seu percurso; por que estradas batidas,
companheiro de nuvens? ó anjo coxo da asa esquerda expulso dos céus e
infernos, donde cicatrizar a ferida?
sob qual céu levantar voo?
existem ninhos de pequenos anjos famintos
à espera de sua volta crepuscular?
não, seu caminho é de ardor
é periclitante e é de fogo e pedra e musgo e lodo
e é íngreme e galho e relva

Talvez o cinema e a literatura confortem
a terça parte do meu ser que pode ser confortada

Talvez... e era sempre dia de talvez, talvezes...
e agora o talvez vacila, parte dizendo adeuses ou até logos,
não distingo bem,
mas sei que parte, sei porque me olha com olhos de vou-me-embora
Não há mais ocaso a nos amarrar os sapatos
e novamente um morro sem freio,
novamente sem bonde ou esperança
mas ainda com uma vontade imensa de me agarrar a beira de sua saia
e assim sair do carro e andar a pé a seu lado, em silêncio, a seu lado

Queria ao menos uma última chance de te sorrir
mas tenho medo que no futuro o amor tome uma tez
[azulada


Levarei ao chão todas as bicicletas cor de fogo.
Jogarei no lixo os buquês de flores cor de vinho.
Apagarei todas as imagens coloridas.

Nada disso, no entanto, afagará a ferida aberta
Pelo escoar do tempo no corpo.
Um corpo todo desmedida,
Todo bifurcação de possibilidades,
Todo abraço dado ao acaso.

Nada disso dá conta das fissuras vazias na tal parede
do tempo – nem mesmo mil pás de cal estancariam essa hemorragia.

Passo em frente a uma boutique:
manequins me olham e seus olhos não guardam expressão alguma;

Navios petrolíferos tentam saquear o mar;
amar virou sucata junto a horizontes perdidos
em meio a cargas a descargar.


(Uma mesa diante de mim expõe uma laranja partida em duas)


me desvinculo do mar,
quando as águas vêm a mim
(Cézar Vallejo)


a noite começa com fagulhas
de felicidade e figuras
geométricas
milimetricamente fatiadas
e dispostas
na cidade nos quartos e casebres;
outra noite de caminhos de asas breves
apertos
simetricamente delimitados
entre distintos lábios
que quando aproximados
se contorcem em sintomas de noites primevas
focos cauterizados duma vontade nua
revivida;
a noite termina com uma lua nova a fisgar um estrela
já conhecida.


*palavra: Vander Vieira
*imagem: William Blake - A Vision: The Inspiration of the Poet (Elisha in the Chamber on the Wall)



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