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José Manuel Ballester |
“Aprendi que a poesia é filha da realidade e da materialidade e impureza do mundo visível, e só através da criação poética o mundo pode ser desvelado.” – Lêdo Ivo
Palavras são pequeninas esferas vibrantes formadas na casca da fala. Como Saturno a devorar seus filhos. São pérolas no regaço carnal de uma consorte. Como Saturno a devorar seus filhos. Para fazer-se, desfazer-se e refazer-se o cortejo onírico. Como Saturno a devorar seus filhos. Ou um naco de aspiração diáfano.
Era uma vez um homem-deus que comandava onze mil guerreiros. Um dia, o homem-deus se apaixonou por uma cabra de uma aldeiazinha distante, quase na fronteira do seu vasto império. Ele tomou para si a cabra, nada pagando ao seu dono, pobre-diabo pastor das estepes. Foi então que o pobre-diabo pastor das estepes se revoltou e resolveu se vingar do homem-deus que comandava o exército de onze mil guerreiros. Sorrateiramente, ele se aproximou da cabra e a matou. O homem-deus, em sua ira desmedida, mandou esquartejar o pobre-diabo pastor das estepes. Cada pedaço do seu corpo foi enviado para cada província do império. Assim, saberiam o tamanho da sua dor e o seu poder. O imperador-deus mandou também construir um templo para praticar a memória da sua amada cabra. Séculos se passaram então. Já não existia império algum. Já não existiam onze mil guerreiros. Já não existia aldeia distante. Já não existiam estepes. Já não existia homem-deus. Tampouco templo. Tudo era ruína. Pó. Os tempos estavam mudados. Todavia, uma estranha adoração permanecera na mente e nos corações dos homens. Altares eram erigidos. Ídolos esculpidos. Religiões nasciam e se corrompiam e se proliferavam a cada dissídio. E a história do homem-deus que se apaixonara por uma cabra das estepes se perdera para todo o sempre.
Nadir do canto e pranto, entram as musas. Nós, as graciosas esferas vibrantes, monumentais estádios etéreos. Nós, substrato. Nós, etos da poesia. Nós que aqui fazemos a vez do coro – obtempera/mento. Dá-Se a poesia. Como Saturno a devorar seus filhos. Canto encantado. Encanto cântico. Encantamento.
Ontem Zaratustra sonhou com dois leões e uma besta negra. Eles o intimidavam, como ocorrera em outro sonho, no qual sete leões o perseguiam. Ele correra, tentando chegar ao cume de uma montanha. Cercaram-no. A besta negra surgira também e se transformara num samurai. Lutaram com espadas. Zaratustra alcançaria, numa outra noite, o cume daquela montanha. Uma leoa prostrada diante de uma mão sem corpo fecharia o seu caminho à última pedra, e também primeira. Um lago com milhares de ametista sob as águas seria a sua única e derradeira alternativa, mas um macaco de pelos dourados conspurcava o corpo de Eva na margem ocidental. E o silêncio. Tinha o silêncio. A guerra estava longe agora, nas planícies. Apenas uma espécie humana sobreviveria então. Zaratustra não pensava em seus filhos que ainda levariam ciclos de tempo para nascer, mas olhava através deles, de crianças brincando sobre um piso de mármore. Aqueles olhos, eram os seus olhos, olhos grandes em faces pequenas, olhos que diziam futuro. A espada do samurai atravessou o seu peito, mas ele não caiu. Continuou lutando, e antes que cortasse o seu adversário em dois, o adversário se tornou mulher. Longe dali dois leões e uma besta negra quebrantavam outro Zaratustra. O dilúvio começara. A água era escura e cheirava mal. Podre. Era um pântano, mas era também uma floresta fechada. Zaratustra subiu em uma das árvores e avançou para a seguinte. Os dois leões ficaram para trás, mas a besta negra mantinha o seu propósito. Zaratustra não sobreviveria. Seus filhos não nasceriam futuro. O mundo não veria mais sol, que explodisse o sol, que explodissem todos os sóis. Andrômeda já atravessara meia galáxia. Eram uma coisa só, uma borboleta dançando no Cosmo. Mas não havia explosões. Não haveria explosões; não até o devido ciclo de tempo. Zaratustra sabia. Nós sabíamos! Um tempo festivo já começara. A dança galáctica, sim! As crianças futuro. Por que Zaratustra ainda sonhava? Por que voltava o seu olhar para o passado, justo agora? Ele trouxe o futuro, mas seus sonhos, mesmo tanto tempo... Ai, o que nós estamos dizendo? Não foi ontem. Tudo agora. Sem amanhã. Mas Zaratustra viu. Viu amanhã e vê agora-ontem. E algo ficou preso no passado, algo que precisa... não... algo que quer se mostrar para Zaratustra. Estou velho, diz ele. Minhas crianças cresceram. Espalharam-se no bater de asas de Borboleta. Agora todos dançam. A nova galáxia festeja. Desde a queda da besta negra do mundo. Eu sou o último da minha espécie. Eu sou passado, agora. Os sonhos me dizem a verdade, sempre. É hora de partir, espírito do tempo. O fluxo em mim deve desvanecer. Precisa. Eu quero. Eu não quero: mais. O ciclo do tempo humano se fechou em mim; como princípio, volto a ser criança. Então. Zaratustra. Presença. Faz-se Esquecimento. Desfaz-se. Uma ode ao homem morto. Pequeno recorte. Dobradura. Borboleta bate suas asas. O sol nasce, como ontem, mas não há mais olhos humanos para vê-lo. Crianças brincam, entre as estrelas. Até que um dia, pleno será o repouso das nascentes dos rios do tempo; é lá que Zaratustra nos espera, agora.
Como Saturno a devorar seus filhos. Potência cosmogônica a velar-des/velar-re/velar o Ser. Como Saturno a devorar seus filhos. Através de um pátio oco lusco-fusco. Como Saturno a devorar seus filhos. Resguarda-se o limite sob um domo, aviltamento do chão. Até estar outra vez no recobrimento concreto do mundo.
Nós não existimos. Existe apenas uma pequena formiga dormindo sobre uma pedra e sonhando que nós existimos. E nós existimos. E os demais seres existem. E o mundo e a natureza existem. E as estrelas. As galáxias. O todo universo existe. Porque a pequena formiga existe ela sonha que as formigas existem. Porque a pequena formiga existe e sonha que as formigas existem. Porque a pequena formiga sonha que existe. Porque a pequena formiga sonha que existe sonho. Porque a pequena formiga sonha que existe pequena formiga sonhando que existe. Porque a pequena formiga existe a pequena formiga não é necessariamente formiga. Porque a pequena formiga não é necessariamente formiga a pequena formiga existe. Como o fruto do conhecimento no Éden não era figo, maçã nem pêssego, a pequena formiga ao não ser necessariamente formiga é em verdade ser. Ser dormindo sobre uma pedra sonhando que nós existimos. Ser dormindo sobre uma pedra sonhando que existe uma pedra. Ser dormindo sobre uma pedra sonhando que existe ser formiga dormindo sobre uma pedra. Ser dormindo sobre uma pedra sonhada sonhando que existe sonho. E que nós, em verdade, existimos.
Interstício do ânimo dos ruminantes. Trincadura orgânica do corpo metafísico – Imitatio Dei. Como Saturno a devorar seus filhos.
A primeira gota do orvalho no Jardim derreterá ao primeiro raio de sol da manhã e produzir-se-á o primeiro som depois do longo silêncio do Inefável.
Uma libélula sorverá o primeiro gole e voará rumo à Imponderabilidade.
Será criado o Homem. Será chamado Homem. E viverá como Homem.
Estará escrito que o Homem não possuirá asas.
Palavra, pedra, homem e galáxia. Pó ao vento, em arrebatamento. E o que mais querem de mim?
Rodrigo Novaes de Almeidaé escritor e jornalista. Tem os seguintes livros publicados: 'Rapsódias – Primeiras histórias breves' (contos, Editora Multifoco, 2009), 'Carnebruta' (contos, Editora Oito e Meio e Editora Apicuri, 2012) e 'A construção da paisagem' (crônicas, com Christiane Angelotti, Editora Sapere, 2012). Tem também textos publicados no Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal Rascunho, Observatório da Imprensa, Portal Cronópios, Jornal Opção, entre outros. Site: http://www.rodrigonovaesdealmeida.com/