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John Jude Palencar - Impossible Things |
Rosário
Um pouco de cólica, um copo de cólera, a doçura me corrompe e me faz crer. Peças pálidas de louça branca povoam vitrines, me fazem sofrer sonhos de cozinhas docilmente planejadas e pés direitos, inalcançáveis de tão altos. Santa paz da redenção material, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Sofás em fila sorriem com desdém, lavalouças que de tão loucas, quidificadores liquidam ideias, exércitos de espremedores avançam em procissão, quase como papas. Pios. Santa paz da redenção descarada, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Mesas de centro de quatro pernas, espanadores com quatro penas, processadores de líquidos diáfanos, apitos psicossomáticos das chaleiras cromadas, a panela pressiona minhas têmporas em uma enxaqueca sem fim. Santa paz da redenção material, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Penduricalhos nas janelas, uvas em cachos de vidro nas fruteiras, impávidas libélulas furta cor sobre o aparador – na parte interna, pratos alaranjados Nadir Figueiredo, frustrados em suas transparências alaranjadas por jamais serem destaques em mesas de Natal. Santa paz da redenção domestica, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Telas de LCD e óculos 3D, relações finadas nas telas da TV, mentiras em efeitos holográficos, o tapete revirado nas pontas, criatividade escondida em dobras, cantos sujos por planos parados, panos encardidos nos vãos das moças. Santa paz da telenovela brasileira, rogai por nós.
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
Escovas de piaçava neo hippies, pás de lixo desencanadas, aspiradores que aspiram uma vida mais fina, lençóis acetinam, o bidê se cala, cálido. A garrafa térmica entorna o caldo, a moça casou. Santa paz da redenção descarada, rogai por nós
(todos repetem, em coro: gozai por nós!).
[Ao sair, é estritamente necessários deixar bíblias, folhetos de cantilenas e véus sobre os bancos].
Cristina Judaré escritora e jornalista, autora dos livros “Vermelho, Vivo” (Devir) e “Lina” (Estação Liberdade). Escreve aqui.