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A POESIA DE VIVIAN AURORA DE MORAES

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I

Granizo gasoso

colho acerolas do tamanho de maçãs
e na minha boca, meus dentes ficam ouro cigano
gosto de frutas, eu gosto
gosto também do gosto de gibi quando estou lendo
e das neves que pairam dúcteis nas nuvens de verão
vivo uma nova era
que era para ser perigosa
mas é apenas gostosa


II

Subo e desço do ônibus e não suporto o burburinho quero ir e voltar no silêncio do lombo de um burro e depois fumar cigarros e soltar a fumaça sem que qualquer me repreenda jecherchequalqu’un num posto de gasolina que possa me ensinar a dirigir mas pensando bem não precisa porque quando tinha cinco anos aprendi a voar eu só desaprendi mas sei andar bem de bicicleta desde que não tenha que pedalar eu faço qualquer coisa para que as pessoas se calem nos ônibus e me deixem caminhar

III

Fotos a dois

eu nunca vou perder você
porque sei cultivar a alegria da sua mágica companhia
faço você gemer e rir alto
e faço também fotos nossas em preto e branco e sépia e coloridas
fotos que você nunca vê comigo
mas que eu vejo com os olhos de quem sempre vê com você
você vai estar sempre ao meu lado, isso não é um conforto
é a felicidade que doi de tão plena




IV

falar à noite

eu tinha pânico na noite
hoje a noite embala a bala no céu da minha boca
rouco, o açoite da minha voz
não alcança todos os meus amigos distantes
mas sussurra nos sons noturnos
notícias para novos companheiros


V

reparação

sou absolutamente solitária no dia claro
com céu azul e sol forte, ainda assim
ninguém confia em mim
acreditam mais na minha morte do que nas minhas aspirações
sãopirações, que eu sei, mas eu tenho muito a dar ainda
um anteparo para a vida longa e profícua
um reparo para um passado que não fica


VI

a cidade mais importante do mundo

chega. vou assistir ao pôr-do-sol na cidade mais importante do mundo
e rir-me de sua importância arrotada na rádio mais ouvida do lugarejo
e rir-me dos jornais locais tão sem qualidade
e rir-me de mim, que vivo aqui, ainda, e por quê?



VII

quero a poesia

quero a poesia
a fria poesia do inverno
a escaldante poesia do verão
na minha mão escrevendo apressada
nas teclas de um notebook
quero a poesia
a pura poesia da vida
num movimento de tudo e nada
quero a poesia que deixa você dormindo
para que, após o amor, você repouse
enquanto escrevo
nada mais poesia que isso:
escrever, escrever, escrever
e depois deitar-me ao seu lado
e senti-lo exausto da paixão
apenas dormindo com seu hálito cálido
e sua respiração cheia de admiração inconsciente
por ter uma mulher que escreve de madrugada



VIII

o dia em que não perdi nada

por tanto  tempo dormi
que não ouvi você chegar
não ouvi o entregador de jornais às seis
não ouvi o lixeiro às sete
não ouvi o telefone às dez
não ouvi a campainha ao meio-dia.
eu não vi você chegar
às duas, depois de ter saído de manhã
e também não recebi a encomenda que o carteiro veio trazer às três.
nesse dia, não houve euforia
apenas dormi, até às cinco.
acordei morta de fome
e você havia feito uma omelete
que parecia mais uns ovos mexidos
comi
e depois voltei a dormir.




IX

hoje é dia de dormir

aqui em casa está todo o mundo dormindo
as três gatas, meu marido, até a internet está dormindo
eu estou com sono, porque hoje é dia de dormir
mas eu ainda não dormi
mas sorri
um sorriso doce como o de quem faz uma arte
estarei em fazendo uma arte agora?
sei que continuo sorrindo
e que isto não só é engraçado, mas também sonolento
como o alento que me dá ver minhas gatas
e meu marido
dormindo


X

ocasião

tenho uma pinga curtida guardada para uma ocasião especial
como o dia em que ganhar na mega-sena
que piada!
se ganhar na mega-sena vou beber champagne cara!
está bem, ela está guardada
para o dia em que as pessoas deixarem de usar a internet para postar idiotices.
idiotice é a minha, por acreditar
que esse dia vai chegar...
então a pinga está guardada
para quando nevar
mas aqui não neva!
então a pinga está reservada
para o dia em que o meu time for campeão
mas isso é tão prosaico!
para que está guardada essa pinga, afinal?
claro! era para aquela festa que nunca veio
para aquela festa em que eu ia comemorar a minha volta aos meus 20 anos
em que eu seria adolescente de novo, e não uma pós-balzaquiana que sou.
porém, eu não posso rejuvenescer.
então não haverá festa
não haverá ocasião
não haverá mais pinga para beber.


XI

estou ouvindo tambores
flautas, batuque arretado
cantos
é gente cantando
e dançando coco
coco é demais!
eu tentei dançar
mas não peguei o tal do um-dois-três
e passei ridículo no meio da roda
pensando um pouco, sempre sou um pouco ridícula
sentindo-me adolescente entre adolescentes
e senil entre velhos
estou na meia-idade
o tempo está entardecendo para mim
mas continuo ouvindo o coco
o coco que dancei
e que me fez corar




XII

opção

tenho ao meu lado uma caixa de fósforos
mas nunca aprendi a batucá-la
só a uso para acender cigarros
e depois de fumar cada um deles, coloco o palito usado ao contrário
para facilitar saber qual ainda está bom para uso
ah! se eu pudesse batucar em vez de fumar!


XIII

nonsense

sempre tenho boas ideias quando estou no escuro
como sair para dançar
sair na frente do meu portão e dançar sem música
ou sair para jantar
sair pelo meu portão, entrar e comer pão
sempre tenho boas ideias quando estou no banho
como me ensaboar
vestir a melhor roupa e encher-me de xampu
sermpre tenho boas ideias quando estou no mar
como nadar
ir para a areia e, deitada, mover os braços e as pernas
sempre tenho boas ideias


XIV

mar

o mar é grande, e é fundo, e é bonito, e tem ondas,
e faz a gente tombar, e faz engolir sal, e ajuda a queimar
quando irei eu novamente ver o mar?



XV

vestido

Quero comprar um vestido
Que me faça mais bonita
Quero ter um estilo
Que possa ser de artista

Quero comer um bolo
Sem ter medo de engordar
Quero rolar num rolo
Para no chão me sujar

Quero me sujar no vestido
No vestido todo novo
Quero é ter um sentido
Quero ser mais do que um ovo










XVI

da noite o que quero

quero da noite
um pouco de solidão
para compor um poema
ou escrever uma canção

quero da noite
toda da muita alegria
respingos de luz
na madrugada fria

quero da noite
inspiração
para não morrer
nem ter desilusão

quero da noite
a lembrança de um amigo
uma caverna, uma gruta na noite
que me sirva de abrigo

quero da noite
um brinde com champanhe
um brinde solitário
que um cigarro acompanhe



XII

ração

hoje havia bem-te-vis em minha antena
minha gata observava
mas a distância era tão imensa para ela
que, mesmo sem saber da braveza das aves
miou bisonhamente
como se houvesse um sonho ao seu alcance
ao mesmo tempo tão remoto
eu sou essa gata
que vê uma refeição num ser alado
que se compraz com a carne sangrenta
mas não passa de uma comedora de ração



Ela

I

se minha mãe se matasse
eu teria de me imolar em praça pública
pois não é justo uma mãe se suicidar antes de sua filha

a inversão das coisas

sou o antídoto da minha mãe
mas não consigo a posologia correta

dormir

eu não consigo
ver minha mãe feliz

infeliz

de mim, que sou uma desqualificada para ela
tenho pelo menos uma honestidade no ódio

doença

é de família
muita gente já se matou entre os meus antepassados

honra

agora, não quero mais sofrer
e esta noite o rivotril me ajuda

remédio

é caro
ter um gosto estranho pela morte

tédio

minha cabeça explode
até que dou o último tiro


II

o leite estava estragado
fiquei sem chupeta

parei de mijar na cama tarde
sou rebelde

bobagens escritas em dois livros
devolvidas pelo correio

ela não tem tempo de retirar a encomenda
ou já previa o conteúdo?

certamente, está apodrecendo no seu retiro
e não se permite encarar o carteiro

cartas
respondidas na mesma folha

com o desprezo de quem não quer guardar uma memória
lembrança


III

dostoiévski
é o culpado
por eu ter largado tudo

larguei na rua a coleção completa encadernada em carmim
que ela me presenteou com tanto carinho

um carinho
raro

não soube preservar sua única memória
queimei todas as cartas

houve oito anos de silêncio
e quando voltei, foi como se o desprezo se tivesse cristalizado

dostoiévski
é a coisa mais doentia que jamais li


IV

quando ela pôs uma barata na minha cabeça
quando me fez jogar fora o limbo das garrafas

me deu uma lição

aprenda! aprenda!
não tenha nojo de sua mãe
que cheira tão mal

eu era uma pata limpando a casa
hoje não tenho vontade de manter o meu lar limpo

e eu me odeio pela sujeira
e pelas memórias


V

ela dançava
sempre do mesmo jeito

irritava meu pai quando cantava
e eu não entendia o mau-humor dele

mas quando eu tinha quatorze anos
e me jogou no batismo da vida
eu me irritava com sua dança feliz

por que estar feliz
se tudo era crítica e preconceito?

ora, eu sou infeliz
e também canto e danço

hoje ela é infeliz
e não canta nem dança mais


VI

fala compulsivamente
da vida dos outros, vulgar
faz caretas medonhas
é maníaco-depressiva
ela não sabe que é maníaco-depressiva – ou sabe

ela sabe
que precisa de ajuda

só que, depois de tantos anos de indiferença
não cabe mais tratamento para o seu transtorno afetivo

o lítio talvez lhe caísse mal
como as roupas que ela usa


VII

uma criança abandonada
aos sete anos de idade

eu era a irmã mais velha
e ganhei a liberdade do meu pequeno mundo de adolescente

nunca havia mensurado o quanto o meu irmão sofrera
até que um dia, na cama

na cama! caralho! ele sofreu, eu soube
e naquela época, nada fiz por ele

apenas repliquei os maus tratamentos aprendidos
nunca fui uma boa irmã

apenas o clone da grosseria e da bestialidade


VIII

ela tira fotografias
com pequenas câmeras analógicas
ficam boas
ela tem talento

meu irmão puxou esse talento
e talvez o humor exacerbado

eu puxei o azedume
e as explosões emocionais

mas agora estou calma
quarenta gotas de rivotril


IX

ela também gosta de posar
e agora eu sou a mãe dela

inversão

eu a levo a passear...

não, está tudo errado
no passado é que subsistem esses fatos...

nunca mais a vi
rezo por ela
sem convicção


X

ela matou a pagu
e me disse sem nenhuma sombra de pesar

ela me mataria, e mataria a meu irmão
sem nenhuma nota de tristeza

aliás, já nos matou
desligou o telefone

desprezou meu marido
é fria com meu irmão e comigo

ela não faz só eutanásia de gatos
ela nos imolou


XI

os oito anos
foi quando eu quis me matar
e precisava de vigilância

meu psiquiatra pediu a presença dela
porque o caso era grave

ela gritou ao telefone que não veria filho-da-puta de psiquiatra nenhum
eu desliguei

e se passaram os oito anos...


XII

não era católica
mas queria agradar aos parentes
então obrigou-me à primeira comunhão
e me humilhou, não me vestindo de branco
e não permitindo que eu fizesse as tarefas que as freiras passavam
ora, preferia nunca ter sido batizada
nunca ter pisado numa igreja católica
nunca ter recebido a hóstia sagrada
assim não teria tido um surto de paranoia religiosa
anos depois, que me levou à reconciliação depois dos oito anos
pedi perdão, ela não me deu
fez bem
ela era quem deveria ter pedido perdão


XIII

seus erros de português
me aborrecem



Foto: Luca Pierro



*    *    *




Vivian Aurora de Moraesé jornalista, formada na Unesp de Bauru, trabalhou em periódicos diários, na Embrapa e no Sesc Araraquara. Tem três livros prontos: "Sonetos Sombrios" e "Poemas e Canções", lançados na Unesp/ FCL Araraquara e no Sesc Araraquara (2012); e "hacais/ vivian/ de moraes". Atibaiense, vive atualmente em Araraquara/SP, onde estuda Letras (Francês) na Unesp. Em maio, a revista "Cult" publicou seu poema "Tesoura".




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