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REABILITAÇÃO/ PROSA DE ALBERTO BRESCIANI

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Reabilitação

Havia terminado o café e me levantava com a velocidade do atraso para o trabalho. O som desagradável do arrastar da cadeira jamais me preveniria de tudo isto. Ao inclinar-me para lhe beijar a testa, ela disse: vou embora! Não conhecia aquela pessoa. Caí sentado e lhe perguntei um porquê com a língua dura de pavor. As coisas não estão bem há muito tempo. Encontrei outra pessoa, ela disse. Abriu a porta dos fundos e saiu. Eu fiquei ali. O susto crescendo em mim até libertar-se em choro compulsivo. Não sei quanto tempo permaneci na cena congelada. Agora eu havia conseguido. Estava só. Coerência. A solidão sempre ruminou em mim. O despertencimento rondando. A inadequação. A inutilidade de uma coruja que não aprende a caçar e não come beterraba. Ficava no escuro. Tudo era ainda mais estranho. Uma tarde eu os vi. Estavam saindo de um banco. Estanquei. Parei de respirar. Senti vergonha. Não era raiva nem ciúme. Eu a decepcionei e deixei partir. Ela era única. Estar ao lado dela era ser quase alguém. Tão bom ver nela todo aquele brilho, os seus desenhos e cores, o cheiro. O rosto dela adolescente, o rosto dela muito depois em cada quadro. Que coisa estranha viver. Nunca se sabe o que vem. E vem bala.  Eu sei que ela me amava. Foi por isso que esperei. Era para ser assim. Hoje, quando entrei no vagão do metrô, ela estava lá. Sozinha. Alguma coisa me empurrou até ela. Não pensei em nada. Minutos. Quatro passos. O cara gritou e o barulho começou. Gritos. Eu olhei para ele. Olhei para ela. Linda. O terror nas pessoas desesperadas, terror em câmera lenta, ratos presos no forno ligado. Nossas mãos se entrelaçaram e a vida toda veio repassada no sangue que escorria. O cara matou quase todos. Nós dois. Não erro mais. Agora o meu amor é para sempre.




foto: Logan Brown



*    *    *







Alberto Bresciani é poeta, nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em Brasília. Autor de “Incompleto movimento” (Editora José Olympio, 2011), escreve em Nóstres. Esta seleta compõe seu livro inédito, “Margem de erro”.


Leia mais textos do autor em mallarmargens. 

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