A face e o fóssil
Um deus cigano sentou-se e chorou
entre as areias de um oceano extinto.
Recordou os monstros que criou
e suicidou-se com as últimas gotas
de um lago de veneno.
entre as areias de um oceano extinto.
Recordou os monstros que criou
e suicidou-se com as últimas gotas
de um lago de veneno.
Nada restou em Marte, apenas sua face,
feita fóssil, mirando a Terra desolada,
onde humanos ateus tentam fartar-se
dos restos da divina felicidade.
feita fóssil, mirando a Terra desolada,
onde humanos ateus tentam fartar-se
dos restos da divina felicidade.
Naves cruzam o Universo à procura
das ruínas de seu sorriso insepulto,
homens perplexos leem mensagens
nesse olhar voltado para o obscuro.
das ruínas de seu sorriso insepulto,
homens perplexos leem mensagens
nesse olhar voltado para o obscuro.
São divinas as criaturas
e seus crimes, sua fome,
irreversível tristeza,
o dom da consciência a confundi-las
ao mirar a máscara mortuária,
ilusão de grandeza
que apequena e esmaga.
e seus crimes, sua fome,
irreversível tristeza,
o dom da consciência a confundi-las
ao mirar a máscara mortuária,
ilusão de grandeza
que apequena e esmaga.
O algoz
Estas mãos
oferecem aconchego
ao pássaro agonizante,
após meu próprio gesto
de abate.
oferecem aconchego
ao pássaro agonizante,
após meu próprio gesto
de abate.
De joelhos, o mestre,
ainda trêmulo
— ao ritmo da ave —
eterniza o instante
quando a morte
lhe mostra a face.
ainda trêmulo
— ao ritmo da ave —
eterniza o instante
quando a morte
lhe mostra a face.
Recolho-me à solidão do algoz –
afogo-me no sangue
que suja e lava
as mãos delirantes,
presas à arma
ainda ofegante.
afogo-me no sangue
que suja e lava
as mãos delirantes,
presas à arma
ainda ofegante.
Diante do adeus
que a ave emana,
renuncio aos poderes
de meu corpo asséptico
e ao dom divino
de ser humano.
que a ave emana,
renuncio aos poderes
de meu corpo asséptico
e ao dom divino
de ser humano.
Estas mãos
abrigam o fim
e dizem adeus ao homem
a apartar-se de mim.
abrigam o fim
e dizem adeus ao homem
a apartar-se de mim.
Damo-nos as costas
e caminhamos por um mundo estranho.
e caminhamos por um mundo estranho.
Dia das caças
Animais caçadores
vão à luta
como os homens,
mantêm vigília
nas madrugadas,
demarcam territórios
onde guardam a alma.
vão à luta
como os homens,
mantêm vigília
nas madrugadas,
demarcam territórios
onde guardam a alma.
Aranhas enredam insetos gigantes
em suas teias,
serpentes observam crianças
nos parques,
você espiona um semelhante
e prepara o ataque.
em suas teias,
serpentes observam crianças
nos parques,
você espiona um semelhante
e prepara o ataque.
Seres viventes vivem em guerra.
Moscas, baratas, ratazanas,
cães vadios e centopeias,
e esses pombos das ruas,
que rastejam como homens
e com eles aprendem a arte da miséria.
Moscas, baratas, ratazanas,
cães vadios e centopeias,
e esses pombos das ruas,
que rastejam como homens
e com eles aprendem a arte da miséria.
A caça ao alcance,
o olhar, o veneno.
A diferença entre você
e esses animais asquerosos
é o medo.
o olhar, o veneno.
A diferença entre você
e esses animais asquerosos
é o medo.
Criatura sem norte,
inventa perfídias,
sonhos e fábulas,
e diante da morte
erige catedrais
onde perde a alma.
inventa perfídias,
sonhos e fábulas,
e diante da morte
erige catedrais
onde perde a alma.
Amálgama
Esta é minha sombra,
posseira deste lugar
onde plantou sonhos roubados
de um corpo que da vida
almejava apenas o dom de navegar.
posseira deste lugar
onde plantou sonhos roubados
de um corpo que da vida
almejava apenas o dom de navegar.
Este é meu corpo, livre entre jaulas,
acorrentado ao barco fantasma
em busca de um porto ausente de mapas,
e a cada retorno a ancestrais paisagens
descobre jamais ter estado lá.
acorrentado ao barco fantasma
em busca de um porto ausente de mapas,
e a cada retorno a ancestrais paisagens
descobre jamais ter estado lá.
Este é meu coração,
trêmulo explorador de um planeta sem norte,
onde o corpo é incapaz de trafegar.
trêmulo explorador de um planeta sem norte,
onde o corpo é incapaz de trafegar.
Esta é minha alma,
dançarina de tempestades,
debruçada à janela para narrar horizontes
ao corpo míope
faminto de miragens.
dançarina de tempestades,
debruçada à janela para narrar horizontes
ao corpo míope
faminto de miragens.
O último verso de Celan
Margeia o rio o anônimo suicida,
a afogar-se na aridez humana.
Ainda lhe resta uma luz na madrugada,
realizar a morte como projeto de vida.
a afogar-se na aridez humana.
Ainda lhe resta uma luz na madrugada,
realizar a morte como projeto de vida.
Não é um rio qualquer, é o Sena,
a dividir a civilização ao meio.
Testemunha de históricas tragédias,
que a paz dessas águas não serena.
a dividir a civilização ao meio.
Testemunha de históricas tragédias,
que a paz dessas águas não serena.
Ele versejou no idioma dos carrascos
e procurou nas dores a beleza.
Quantos parasitas quebram o silêncio...
Cruza a ponte o morto solitário.
A noite parece leve a seus eflúvios.
Contra as feras, faz-se náufrago.
e procurou nas dores a beleza.
Quantos parasitas quebram o silêncio...
Cruza a ponte o morto solitário.
A noite parece leve a seus eflúvios.
Contra as feras, faz-se náufrago.
Muito tempo atrás conheci o futuro,
mudo oráculo de homens sem rumo.
Histórias fantásticas lhe atribuíam,
mas o passado, sem pressa, desmentia.
Construí no presente a esperança,
para enfrentar o tempo e sua correnteza.
A afasia do futuro torna surdos os homens,
as mutações do passado, inúteis as certezas.
Diante do abismo, vejo voar o tempo.
Não compreende a direção de seu mover-se
quem parado e sonhador apenas espera.
Cada um refaz na história a sua farsa,
reconstrói o futuro antes que tome forma,
e se faz máscara quando tudo se esgarça.
mudo oráculo de homens sem rumo.
Histórias fantásticas lhe atribuíam,
mas o passado, sem pressa, desmentia.
Construí no presente a esperança,
para enfrentar o tempo e sua correnteza.
A afasia do futuro torna surdos os homens,
as mutações do passado, inúteis as certezas.
Diante do abismo, vejo voar o tempo.
Não compreende a direção de seu mover-se
quem parado e sonhador apenas espera.
Cada um refaz na história a sua farsa,
reconstrói o futuro antes que tome forma,
e se faz máscara quando tudo se esgarça.
Corvos sobre o trigal
Vão viageiro, perdido navego
debruçado em meus abismos,
sinto estranha saudade
de coisas que não me enlevam.
debruçado em meus abismos,
sinto estranha saudade
de coisas que não me enlevam.
Um silêncio álacre
sobre a tarde fria,
mortos os girassóis ao fim dos dias,
Corvos saúdam meu rosto de azinhavre.
sobre a tarde fria,
mortos os girassóis ao fim dos dias,
Corvos saúdam meu rosto de azinhavre.
Botas cansadas do caminho incerto
e um azul inalcançável
conduzem meus passos de quimera
ao murmúrio de ventos amarelos.
e um azul inalcançável
conduzem meus passos de quimera
ao murmúrio de ventos amarelos.
Sonhos maculam os trigais,
criam trilhas, cruzam pontes
e acenam de longe, de incerta lacuna
quando diviso o nunca mais.
criam trilhas, cruzam pontes
e acenam de longe, de incerta lacuna
quando diviso o nunca mais.
Tudo é tinta, tudo é imagem,
futuro enigma, o indecifrável
rastro sombrio dos luminares.
Traço a derradeira encruzilhada.
futuro enigma, o indecifrável
rastro sombrio dos luminares.
Traço a derradeira encruzilhada.
O estranho
Não passas de um intruso nesta manhã de sol,
mesmo que mil olhos abandonem os espelhos
e se acerquem de teu desespero inominado.
mesmo que mil olhos abandonem os espelhos
e se acerquem de teu desespero inominado.
Inóspito é o mundo a construir-se à tua volta.
São anticorpos a expulsar o objeto estranho
porque todos os tempos são indecifráveis.
São anticorpos a expulsar o objeto estranho
porque todos os tempos são indecifráveis.
Entregam-te o caos para que o ordenes,
o circo onde duelam felicidades e tragédias,
destroços de vidas para que as reconstruas.
o circo onde duelam felicidades e tragédias,
destroços de vidas para que as reconstruas.
Não há volta ou refúgios para a viagem,
mas um horizonte trancado a chave.
Ali interromperam a tua eternidade.
mas um horizonte trancado a chave.
Ali interromperam a tua eternidade.
Gaiolas
O velho artesão e suas gaiolas:
ripas de madeira trançadas com arame,
limites do corpo, delírio de vozes.
ripas de madeira trançadas com arame,
limites do corpo, delírio de vozes.
Olhos de pássaros enjaulados:
o canto em desespero
na busca do invisível.
o canto em desespero
na busca do invisível.
O avô e seus pássaros inêufonos,
a quem o vento segreda
a direção de novas prisões.
a quem o vento segreda
a direção de novas prisões.
O velho artesão
e sua velhice melódica —
à janela, o silêncio do mundo.
e sua velhice melódica —
à janela, o silêncio do mundo.
O amor de asas cortadas
não conhece a rosa dos ventos;
nem vôos, nem movimentos.
não conhece a rosa dos ventos;
nem vôos, nem movimentos.
Fruteiras
Mangas e jabuticabas
se amavam, obscenas,
entre entulhos no quintal.
Exalavam fluidos e perfumes
prazeres infantis
quando os frutos maturavam.
se amavam, obscenas,
entre entulhos no quintal.
Exalavam fluidos e perfumes
prazeres infantis
quando os frutos maturavam.
Havia sombras,
havia o silêncio,
o vento fresco e sereno.
E pássaros a sugar suas delícias,
felizes de ser livres entre as folhas,
ofuscando o canto
dos curiós aprisionados.
havia o silêncio,
o vento fresco e sereno.
E pássaros a sugar suas delícias,
felizes de ser livres entre as folhas,
ofuscando o canto
dos curiós aprisionados.
Entre alicerces de muros e meiáguas,
davam-se galharias, cruzavam raízes,
e esse amor insano e afoito
provocou rachaduras
nas paredes da casa.
davam-se galharias, cruzavam raízes,
e esse amor insano e afoito
provocou rachaduras
nas paredes da casa.
E antes que telhados viessem abaixo
sobre as cabeças comportadas,
arrancaram-se dos porões serras e machados
remédio contra amor rebelde e invulgar.
E já não há mangas. Já não há jabuticabas.
sobre as cabeças comportadas,
arrancaram-se dos porões serras e machados
remédio contra amor rebelde e invulgar.
E já não há mangas. Já não há jabuticabas.
foto: Autorretrato do jipe robô Curiosity, enviado pela Nasa para explorar Marte.
* * *
![]() |
Alexandre Marino por João Neto |
Alexandre Marino nasceu em Passos (MG) em 1956 e vive em Brasília desde 1985. Jornalista, é servidor do Ministério da Educação. Escreve poesia desde a infância. Publicou em junho de 2013 seu sexto livro de poemas, Exília, pela Dobra Editorial, de São Paulo. Seus livros anteriores: Poemas por amor (edição fora do mercado, 2007), Arqueolhar (LGE/Varanda, 2005), O delírio dos búzios (Varanda, 1999), Todas as tempestades (ed. do autor, 1981) e Os operários da palavra(Batangüera, 1979). Na adolescência criou, ao lado de outros autores, a revista Protótipo, que lançada em 1972 foi apontada por Glauco Mattoso como uma das pioneiras do movimento Marginal. Os poemas A face e o fóssil, O algoz, Dia das caças, Amálgama, O último verso de Celan, O tempo, Corvos sobre o trigal são do livro Exília. Os poemas O estranho, Gaiolas, Fruteiras são do livro Arqueolhar.