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10 POEMAS DE ALEXANDRE MARINO

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A face e o fóssil


Um deus cigano sentou-se e chorou
entre as areias de um oceano extinto.
Recordou os monstros que criou
e suicidou-se com as últimas gotas
de um lago de veneno.

Nada restou em Marte, apenas sua face,
feita fóssil, mirando a Terra desolada,
onde humanos ateus tentam fartar-se
dos restos da divina felicidade.

Naves cruzam o Universo à procura
das ruínas de seu sorriso insepulto,
homens perplexos leem mensagens
nesse olhar voltado para o obscuro.

São divinas as criaturas
e seus crimes, sua fome,
irreversível tristeza,
o dom da consciência a confundi-las
ao mirar a máscara mortuária,
ilusão de grandeza
que apequena e esmaga. 





 O algoz


Estas mãos
oferecem aconchego
ao pássaro agonizante,
após meu próprio gesto
de abate.

De joelhos, o mestre,
ainda trêmulo
— ao ritmo da ave —
eterniza o instante
quando a morte
lhe mostra a face.

Recolho-me à solidão do algoz –
afogo-me no sangue
que suja e lava
as mãos delirantes,
presas à arma
ainda ofegante.

Diante do adeus
que a ave emana,
renuncio aos poderes
de meu corpo asséptico
e ao dom divino
de ser humano.

Estas mãos
abrigam o fim
e dizem adeus ao homem
a apartar-se de mim.

Damo-nos as costas
e caminhamos por um mundo estranho.



  
Dia das caças


Animais caçadores
vão à luta
como os homens,
mantêm vigília
nas madrugadas,
demarcam territórios
onde guardam a alma.

Aranhas enredam insetos gigantes
em suas teias,
serpentes observam crianças
nos parques,
você espiona um semelhante
e prepara o ataque.

Seres viventes vivem em guerra.
Moscas, baratas, ratazanas,
cães vadios e centopeias,
e esses pombos das ruas,
que rastejam como homens
e com eles aprendem a arte da miséria.

A caça ao alcance,
o olhar, o veneno.
A diferença entre você
e esses animais asquerosos
é o medo.

Criatura sem norte,
inventa perfídias,
sonhos e fábulas,
e diante da morte
erige catedrais
onde perde a alma.



  
Amálgama


Esta é minha sombra,
posseira deste lugar
onde plantou sonhos roubados
de um corpo que da vida
almejava apenas o dom de navegar.

Este é meu corpo, livre entre jaulas,
acorrentado ao barco fantasma
em busca de um porto ausente de mapas,
e a cada retorno a ancestrais paisagens
descobre jamais ter estado lá.

Este é meu coração,
trêmulo explorador de um planeta sem norte,
onde o corpo é incapaz de trafegar.

Esta é minha alma,
dançarina de tempestades,
debruçada à janela para narrar horizontes
ao corpo míope
faminto de miragens.



  
O último verso de Celan


Margeia o rio o anônimo suicida,
a afogar-se na aridez humana.
Ainda lhe resta uma luz na madrugada,
realizar a morte como projeto de vida.

Não é um rio qualquer, é o Sena,
a dividir a civilização ao meio.
Testemunha de históricas tragédias,
que a paz dessas águas não serena.

Ele versejou no idioma dos carrascos
e procurou nas dores a beleza.
Quantos parasitas quebram o silêncio...
Cruza a ponte o morto solitário.
A noite parece leve a seus eflúvios.
Contra as feras, faz-se náufrago.




O tempo


Muito tempo atrás conheci o futuro,
mudo oráculo de homens sem rumo.
Histórias fantásticas lhe atribuíam,
mas o passado, sem pressa, desmentia.
Construí no presente a esperança,
para enfrentar o tempo e sua correnteza.
A afasia do futuro torna surdos os homens,
as mutações do passado, inúteis as certezas.
Diante do abismo, vejo voar o tempo.
Não compreende a direção de seu mover-se
quem parado e sonhador apenas espera.
Cada um refaz na história a sua farsa,
reconstrói o futuro antes que tome forma,
e se faz máscara quando tudo se esgarça.
  




Corvos sobre o trigal


Vão viageiro, perdido navego
debruçado em meus abismos,
sinto estranha saudade
de coisas que não me enlevam.

Um silêncio álacre
sobre a tarde fria,
mortos os girassóis ao fim dos dias,
Corvos saúdam meu rosto de azinhavre.

Botas cansadas do caminho incerto
e um azul inalcançável
conduzem meus passos de quimera
ao murmúrio de ventos amarelos.

Sonhos maculam os trigais,
criam trilhas, cruzam pontes
e acenam de longe, de incerta lacuna
quando diviso o nunca mais.

Tudo é tinta, tudo é imagem,
futuro enigma, o indecifrável
rastro sombrio dos luminares.
Traço a derradeira encruzilhada.
  




O estranho


Não passas de um intruso nesta manhã de sol,
mesmo que mil olhos abandonem os espelhos
e se acerquem de teu desespero inominado.

Inóspito é o mundo a construir-se à tua volta.
São anticorpos a expulsar o objeto estranho
porque todos os tempos são indecifráveis.

Entregam-te o caos para que o ordenes,
o circo onde duelam felicidades e tragédias,
destroços de vidas para que as reconstruas.

Não há volta ou refúgios para a viagem,
mas um horizonte trancado a chave.
Ali interromperam a tua eternidade.

  



Gaiolas


O velho artesão e suas gaiolas:
ripas de madeira trançadas com arame,
limites do corpo, delírio de vozes.

Olhos de pássaros enjaulados:
o canto em desespero
na busca do invisível.

O avô e seus pássaros inêufonos,
a quem o vento segreda
a direção de novas prisões.

O velho artesão
e sua velhice melódica —
à janela, o silêncio do mundo.

O amor de asas cortadas
não conhece a rosa dos ventos;
nem vôos, nem movimentos.
  




Fruteiras


Mangas e jabuticabas
se amavam, obscenas,
entre entulhos no quintal.
Exalavam fluidos e perfumes
prazeres infantis
quando os frutos maturavam.

Havia sombras,
havia o silêncio,
o vento fresco e sereno.
E pássaros a sugar suas delícias,
felizes de ser livres entre as folhas,
ofuscando o canto
dos curiós aprisionados.

Entre alicerces de muros e meiáguas,
davam-se galharias, cruzavam raízes,
e esse amor insano e afoito
provocou rachaduras
nas paredes da casa.

E antes que telhados viessem abaixo
sobre as cabeças comportadas,
arrancaram-se dos porões serras e machados
remédio contra amor rebelde e invulgar.
E já não há mangas. Já não há jabuticabas.




foto: Autorretrato do jipe robô Curiosity, enviado pela Nasa para explorar Marte.



*     *     *



Alexandre Marino por João Neto 
Alexandre Marino nasceu em Passos (MG) em 1956 e vive em Brasília desde 1985. Jornalista, é servidor do Ministério da Educação. Escreve poesia desde a infância. Publicou em junho de 2013 seu sexto livro de poemas, Exília, pela Dobra Editorial, de São Paulo. Seus livros anteriores: Poemas por amor (edição fora do mercado, 2007), Arqueolhar (LGE/Varanda, 2005), O delírio dos búzios (Varanda, 1999), Todas as tempestades (ed. do autor, 1981) e Os operários da palavra(Batangüera, 1979). Na adolescência criou, ao lado de outros autores, a revista Protótipo, que lançada em 1972 foi apontada por Glauco Mattoso como uma das pioneiras do movimento Marginal. Os poemas A face e o fóssil, O algoz, Dia das caças, Amálgama, O último verso de Celan, O tempo, Corvos sobre o trigal são do livro Exília. Os poemas O estranho, Gaiolas, Fruteiras são do livro Arqueolhar



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