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Série: Abysmus Express, de José Antônio Cavalcanti (II)

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Imagem: Egon Schiele


Parte II

Sexta estação

Desnudados num piscar de olhos, não reparamos a invasão de outros perfumes pretéritos aquém dos espelhos que nos arremessavam ao teto. Mentiras e gozos alheios permaneciam entre as paredes, fantasmas alongando excessos ao tempo de permanência. Meu rosto na toalha macia filtrava a respiração da rua em ablução ou batismo com o qual a pressa convertia-se em outro ritmo, sístole e diástole, fôlego erótico para atravessar túnel noturno. Bordadas na toalha com perfeição de fotografia, as mãos de Verônica secavam mágoas e acariciavam a barba tão rala (no desenho eu negava três vezes a navalha sobre a bancada de aço inoxidável da pia). Um quarto sempre será estreito para o amor quando se rompe o lacre das aparências, quando desaba a blindagem de timidez e previsibilidade. Trouxemos de fora a tempestade, a saliva em temperatura de lava, a oleosidade incontrolável na zona erógena do corpo, a intumescência vergonhosa do pau saltando vexame na calça xadrez, o movimento de nos tocar como se acendêssemos febre no corpo inteiro. Então, arrancamos nacos de carne com as pontas dos dedos lambuzadas de felicidade, fabricamos solda de suor e seivas, inventamos moluscos bivalves, fístulas, dutos de perversão e santidade; abraçados em extremos tão voláteis, vibrando em jorro em nossos dentros, levitamos nossos nomes, desmanchando-os letra a letra lentamente sobre a cama incandescente que trouxemos da rua em nossos pulsos.


Sétima estação

Não cair pela segunda vez, mesmo que íngreme demônio o caminho à tua pele estendida no alto de tantos desencontros. O desejo e seus antigos afluentes latejam nas têmporas correntezas sanguíneas, pressão máxima, tonta navegação armilar nos polos cranianos. Todos os líquidos corporais operam prodígios no campo magnético dos olhos, injetando-lhes uma luz alaranjada que alimenta cães selvagens na penumbra de seios à espera de ossos e areia. O sopro oriundo de cofres internos devasta, espera e amplia ao infinito o som da abertura do zíper, enquanto o mover-se inquieto das mãos, impuro balé tateando maciez e manhã em peles rasuradas de hiatos e perdas, em teus pelos úmidos, em teus ocos, acende luzes de emergência entre as coxas. O tempo líquido, um mar anterior ao mundo, faz a armada ora levitar, ora ir ao fundo, mas todas as naus resistem completas à intensa travessia. As marés da carne, o enroscar-se de caramujos, a hibridez de rocha e esponja, tudo respira instante e eternidade. Alargar e contrair luas e pêndulos cravados na loucura mútua. Na ausência de centro, apenas alternância, ritmo, dança erótica; movimentos centrífugo e centrípeto. Corpos cerzidos, emendas afetivas, rascunhos amorosos, males da alma, tudo se evapora. Despidos de nós, o que somos vige exatamente agora quando gozamos estrelas de igual grandeza.


Oitava estação

Vieram as mulheres de Jerusalém para enxertar na minha pele devastada toda uma fome de bestas sem apocalipse, sem memória. Toalhas de linho sobre o criado-mudo e potes de barro ao pé da cama, as loucas de véu azul revezavam-se em fogo e fúria, excitadas com nacos de músculos e nervos entre os dentes de ouro. Com mãos gordurosas limpavam o excesso, depois usavam as próprias túnicas para extrair pequenos pedaços de vísceras entre os dedos viciados na solidão do sexo nas colinas. Aos risos, entoando palavras desconhecidas, jogavam em cestos de vime grandes flocos de algodão doce de sangue. Em meio à sofreguidão dos monossílabos do gozo, um nome soou acima dos lençóis rasgados pela luxúria, e era o teu nome flutuando em sílabas enlaçadas à memória da tua carne em noites de frio. Ao ouvi-lo, as mulheres murcharam arroxeadas, as pedras de anéis presos à avidez das mãos perderam o brilho, todos os véus caíram ao chão como deusas de barro, contaminando de melancolia vestes lavadas em lágrimas, esperma e sangue. A mais louca paralisou interminável felatiopara cuspir maldições pelas dezenas de cáries da boca, os olhos fuzilando crimes. Saíram em bando, as almas insaciáveis sumiram como farrapos ambulantes muito além das cortinas do sonho. Sim, possuo apenas um nome para o amor, e é teu ainda mais quando te ausentas.


Nona estação

A terceira queda no furor do corpo, três vezes o galo sobreposto à mudez, três cruzes no calvário acima do tórax, três vezes a água batendo no queixo. Levanta-te, Lázaro – e era como se um deus desconhecido rasgasse os estreitos limites do desejo, irrigando com o verbo canais secretos; talvez soprasse com desânimo uma das trombetas oxidadas após a queda das muralhas de Jericó. Sim, também os deuses aprenderam as margens noturnas dos homens, saem de pesadelos em bando para invadir a topografia afetiva fora do plano divino, sabem agora que todas as cidades são Sodoma e Gomorra. A desconhecida ria em sua nudez esplêndida, risos de puta, risos de quem abre as pernas às varizes e à exaustão das horas. Pela janela, infiltração da lua de cobalto. E, frenética loucura amorosa, gozava e ria a intervalos bem largos, na mesma frequência dos espasmos com os quais cobríamos nossos corpos gangrenados de carências. Os olhos, às gargalhadas, urravam: “Canalha! Filho da puta! Eu tô chapada, seu babaca!”. A carne ulcerada já não sentia o prazer em excesso, muito além do preço combinado. A cidadela indefesa, a trompa de Falópio sitiada, uma legião microscópica condenada pela insânia de um comandante tarado. “Seu merda, lúcida eu não gozava”.


Décima estação

A voz estridulante chegou cinquenta passos à frente da sombra, estranho chamado ao interior de antro gorduroso, coalhado de objetos inúteis, móveis quebrados, velas e oferendas. Era Deus e seus dez desregramentos do outro lado da parede mofada. Mãos de dedos rugosos estenderam-se como punhal dentado numa exigência imperiosa de nomes, roupas e pertences. Antes que os olhos piscassem, abrupto puxão nas costas; o linho rasgado de cima a baixo, as calças dilaceradas por dentes em fúria, cães arrancando sapatos, nacos de carne e tatuagens. Pequenos dados viciados, bilhetes amassados, moedas e retratos perdidos na recepção dos leões-de-chácara encapuzados. Despojado da película de ataraxia, o corpo esplendia viço e virilidade. A voz soou mais intensa, suplicando chagas, úlceras, doenças, arrependimentos, choro convulso, mas o corpo rijo e resistente lançou-lhe insultos no céu de álcool e feromônios: respiração ofegante, pressão alterada, circulação acelerada, brilho nos olhos, narinas dilatadas, o pau - lança rubra erguida por demônios. No chão, as vestes impuras e as íris dilatadas de Bastet, testemunhas dos nomes que escorriam sílabas e cadáveres de boca em metástase.

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