BAQUE
Jonas entrou na baleia e sentiu
naquelas entranhas o melhor destino
não pôde evitar seus pelos
e uma convulsão explodiu nas vísceras
arremessado contra as rochas Jonas
ainda guarda memórias azuis e antigas
os olhos de vidro têm um estranho
estático brilho
TRADUÇÃO
Confesso meu amor
imenso às ilhas
Claro está
não falamos
a mesma língua
Não sei se me ouvem
e percebem
mas em meio às ondas frias
um cardume de águas marinhas
lambe de azul
as pernas
o corpo
No gosto
no gozo
Eu
imerso
OPÇÃO
Arquitetos adotam a transparência
como regra e matéria-prima
cobrem as cidades com casas de vidro
quase tudo se sabe
de lado a lado
é livre a visão
do peito rasgado
da luz que se apaga
dois gatos à espera
papilas que exultam
(o verbo esconder resseca
as coordenadas abertas)
há até quem prefira
vender suas vestes
e assim exposto
no ventre da urbana vitrine
apenas estar
em linha reta
outros rezam
pelo final das tempestades
ou pelo tiro na testa
BOLETIM
O incêndio teve início por nada
mistério insensato
talvez a manobra
de insidiosos insetos
O fato é que ao tempo de um gesto
mil hectares de lavanda
estavam em chamas
nas extremidades desse mundo em fogo
opostos e separados e imóveis
aspirávamos a fumaça negra
perplexos já quase mortos
pelas perdas
A despeito da sufocação
na memória
um perfume
resistia
EM QUEDA LIVRE
O dramaturgo acorda e vê
não devia ter feito dito escrito nada
Pouca vida?
Escalasse o poste
em frente à casa
por sobre o carro
Ali sim o claro é ofício
(na trama dos fios até se alternam
casais de tuim e joão-de-barro)
Do alto veria a cidade toda
seu mundo tolo
Saltasse - o estilhaçar dos ossos
dentes quebrados
Tocaria as feridas e esqueceria
(tudo real tão simples e somente)
Mas não
ele faz diz escreve insiste
é tão ar é mais forte
E frio sente a febre sem sair do lugar
(pouco sabe ou aprende de rupturas
hemorragias fraturas do espectro)
Contágio ou emboscada de tigres
não tem escolha nenhum atalho
Lentamente vai caindo
para onde não há
Quase antevendo o baque
apaga-se ilumina-se
agoniza comemora
em queda livre
ANIVERSÁRIO
Cinquenta anos não vieram
com astúcia e ciência
Não os convidei
Caminhava
quando me acertaram
Com eles se abriu
imensa folha
de papel em branco
encobrindo
o céu
o Cristo no monte
as horas
E eu
- só -
não sei
À DERIVA
Largo monumental de histórias
lajes antigas
e duras estátuas equestres
No epicentro da cena
olho ao lado e vejo
que se foram as unhas os dedos
minha mão parte do antebraço
E dói a dor que me pertence
e respira fundo
rente ao meu tempo-todo
Sei entretanto do jato de sol
descendo bem à frente
Eu sei
mas nele um anúncio –
não demora
logo o mar
cobrirá o último passo
E eu ainda murmuro
Sou aquele que ri
durante o naufrágio
AUSÊNCIA
Meus dois amigos morreram
meus dois amigos morreram
legaram-me uma tartaruga
gigante das Galápagos
que não cessa de crescer
dentro do meu peito
e não me deixa respirar
guardo seus nomes e números
no celular (eu também os tatuei
no tempo) mas não
nos falaremos nunca mais
nem um sorriso nem outro
nunca mais
meus dois amigos morreram
meus dois amigos morreram
perco a conta dessas gotas
que insistem
e morro com eles
sem ter aonde ir
não vejo não escuto
com a mordaça dessas mortes
não vêm palavras
nem sei o que fazer
o nunca pesa
é fundo
a estrada é extensa demais
e os antúrios indiferentes
voltam a florescer
INSOLVÊNCIA
Vem de longe
um som, apodera-se
cumpre o perdido destino
que nos cabia
a funda ilusão da música
acende
por um instante engana
as ruínas da casa
DISTONIA
Cada passo
atrasa o futuro
tece arremedo
engana o senso
crente
arrisco o fígado
um último rim
mastigo os vidros
da boca
da voz
para esquecer
os cacos
retalhando
nomes
tempo
todos nós
Foto: Heather Landis
* * *

Alberto Bresciani é poeta, nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em Brasília. Autor de “Incompleto movimento” (Editora José Olympio, 2011), escreve em Nóstres. Esta seleta compõe seu livro inédito, “Margem de erro”.
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