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10 POEMAS DE ALBERTO BRESCIANI

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BAQUE


Jonas entrou na baleia e sentiu
naquelas entranhas o melhor destino

não pôde evitar seus pelos 
e uma convulsão explodiu nas vísceras 

arremessado contra as rochas Jonas 
ainda guarda memórias azuis e antigas 

os olhos de vidro têm um estranho 
estático brilho




TRADUÇÃO


Confesso meu amor 
imenso às ilhas 

Claro está
não falamos 
a mesma língua 

Não sei se me ouvem 
e percebem 

mas em meio às ondas frias 
um cardume de águas marinhas 
lambe de azul
as pernas 
o corpo

No gosto
no gozo

Eu 

imerso




OPÇÃO


Arquitetos adotam a transparência 
como regra e matéria-prima 
cobrem as cidades com casas de vidro 
quase tudo se sabe 
de lado a lado 

é livre a visão 
do peito rasgado  
da luz que se apaga 
dois gatos à espera 
papilas que exultam 

(o verbo esconder resseca 
as coordenadas abertas) 

há até quem prefira
vender suas vestes 
e assim exposto 
no ventre da urbana vitrine  
apenas estar 
em linha reta 

outros rezam 
pelo final das tempestades
ou pelo tiro na testa




BOLETIM


O incêndio teve início por nada 
mistério insensato 
talvez a manobra 
de insidiosos insetos 

O fato é que ao tempo de um gesto 
mil hectares de lavanda 
estavam em chamas 

nas extremidades desse mundo em fogo 
opostos e separados e imóveis 
aspirávamos a fumaça negra 
perplexos já quase mortos 
pelas perdas 

A despeito da sufocação 
na memória 
um perfume 
resistia




EM QUEDA LIVRE


O dramaturgo acorda e vê
não devia ter feito dito escrito nada 

Pouca vida?
Escalasse o poste 
em frente à casa 
por sobre o carro 

Ali sim o claro é ofício
(na trama dos fios até se alternam
casais de tuim e joão-de-barro) 
Do alto veria a cidade toda 
seu mundo tolo 

Saltasse - o estilhaçar dos ossos 
dentes quebrados 
Tocaria as feridas e esqueceria 
(tudo real tão simples e somente) 

Mas não
ele faz diz escreve insiste 
é tão ar é mais forte 

E frio sente a febre sem sair do lugar 
(pouco sabe ou aprende de rupturas 
hemorragias fraturas do espectro)

Contágio ou emboscada de tigres 
não tem escolha nenhum atalho 

Lentamente vai caindo 
para onde não há  

Quase antevendo o baque 
apaga-se ilumina-se  
agoniza comemora
em queda livre




ANIVERSÁRIO 


Cinquenta anos não vieram
com astúcia e ciência 

Não os convidei 

Caminhava  
quando me acertaram 

Com eles se abriu  
imensa folha 
de papel em branco 

encobrindo
o céu
o Cristo no monte
as horas 

E eu 

- só -

não sei 




À DERIVA


Largo monumental de histórias 
lajes antigas 
e duras estátuas equestres 

No epicentro da cena 
olho ao lado e vejo  
que se foram as unhas os dedos 
minha mão parte do antebraço 

E dói a dor que me pertence 
e respira fundo 
rente ao meu tempo-todo 

Sei entretanto do jato de sol 
descendo bem à frente
Eu sei 

mas nele um anúncio – 
não demora
logo o mar 
cobrirá o último passo
E eu ainda murmuro

Sou aquele que ri 
durante o naufrágio




AUSÊNCIA


Meus dois amigos morreram
meus dois amigos morreram

legaram-me uma tartaruga
gigante das Galápagos
que não cessa de crescer
dentro do meu peito
e não me deixa respirar

guardo seus nomes e números
no celular (eu também os tatuei
no tempo) mas não
nos falaremos nunca mais

nem um sorriso nem outro
nunca mais

meus dois amigos morreram
meus dois amigos morreram

perco a conta dessas gotas
que insistem
e morro com eles
sem ter aonde ir

não vejo não escuto
com a mordaça dessas mortes
não vêm palavras
nem sei o que fazer

o nunca pesa 
é fundo
a estrada é extensa demais

e os antúrios indiferentes
voltam a florescer




INSOLVÊNCIA


Vem de longe
um som, apodera-se 

cumpre o perdido destino 
que nos cabia 

a funda ilusão da música 
acende

por um instante engana 
as ruínas da casa




DISTONIA


Cada passo 
atrasa o futuro 
tece arremedo 
engana o senso  

crente
arrisco o fígado 
um último rim 
mastigo os vidros 

da boca 
da voz
para esquecer 
os cacos   

retalhando 
nomes 
tempo
todos nós





Foto: Heather Landis


*    *    *








Alberto Bresciani é poeta, nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em Brasília. Autor de “Incompleto movimento” (Editora José Olympio, 2011), escreve em Nóstres. Esta seleta compõe seu livro inédito, “Margem de erro”.


Leia mais poemas do autor em mallarmargens.





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