Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

CONTO DE NATHAN MATOS MAGALHÃES

$
0
0







Clarice

            O cachimbo está jogado na borda da janela. O vento não tem, ainda é meio-dia. Clarice se estica na rede, na varanda há sombra, fecha os olhos, abre os olhos. A empregada arruma qualquer coisa na sala, bate as almofadas. Clarice é alérgica, não gosta de poeira, o nariz coriza, sempre espirra, os olhos lacrimejam, Se um dia quiserem me matar, façam uma carreirinha de poeira e me façam cheirar, não deve haver coisa pior, ela pensa enquanto a empregada limpa.
            Com o dedão do pé esquerdo trisca a parede, faz a rede se movimentar, outro toque, a rede agora balança e uma brisa lenta passa, Ventinho bom, diz ela. O cachimbo continua na janela. A empregada agora limpa a janela com jornal. Nunca entendi isso, limpar janela com jornal, questiona. Esse cachimbo é seu, Dona Clarice? A menina não responde, fica esticada na rede, balançando-se, prefere lembrar da noite anterior, da transa, do cheiro do sexo que ela gozava, tudo feito ali, na varanda.
            Dona Clarice? O que foi? Esse cachimbo é da senhora? Deixa isso aí, Madalena. Mas se a Dona Letícia dá de cara com isso aqui não vai gostar. Tá, tá, traz ele aqui. A empregada entrega o cachimbo. Seus pais haviam viajado para a casa na praia, mas resolvera não ir. Resolvera ficar em casa, sozinha, nua ou de calcinha. Gostava de ver os seus seios assim, soltos, à mostra. Se pudesse andaria assim sempre. Cheira o cachimbo. Lembra da noite anterior. Não gritava, só mordia os próprios lábios, a pele dele, sentindo aquele suor azedo que lhe invadia a boca.
            Boa tarde mocinha. Oi mamãe. Olá princesa. Oi papai. Esconde o cachimbo entre o lençol, o pai vem até ela, senta na borda da rede, cheira-lhe o cabelo e dá um beijo na bochecha de Clarice, ela sorri. Como foi o seu fim de semana? Bom. Bom? Tá certo, então, vou tomar um banho, estou cansando. Tá certo, então, o pai sai. Clarice olha pela varanda, tem o cachimbo entre as mãos, cheira-o novamente, fecha os olhos para lembrar mais uma vez a noite anterior. Aquelas mãos apertando os seus seios, aquele abraço forte de como se lhe fossem partir ao meio, Não vou esquecer essa cena por muito tempo, ela pensa baixinho.    
            Os pais estão no quarto, a empregada continua a limpeza, Clarice fica na rede, deitada. Olha pra fora de si e tem vontade de tirar todas as roupas, ficar nua, mas os pais brigariam, prefere sonhar. A tarde passa. Tantos prédios. Nenhum barulho. Hoje é domingo, hoje é só mais um dia, mais uma lembrança que fica, mais uma transa com o mundo. Clarice chora, desesperadamente, sabe que nunca mais o verá. Atira o cachimbo pela varanda, Clarice perdera a esperança. O cachimbo não quebrara, Clarice segurara-o com todas as forças entre as mãos. O pai levanta, olha a hora, cinco e trinta e nove, procura a filha na varanda, no quarto. Chama por ela, Clarice! O corpo todo lhe apavora o pensamento, o interfone toca. Minha filha!, ele grita. Clarice não chora, ainda lembra da transa, da noite anterior, do cheiro do sexo.





Pintura: René Magritte

*    *    *




Nathan Matos Magalhães acordou tarde para os mundos, mas conseguiu se formar em Letras. Edita a Revista Pechisbeque e o Blog Literário LiteraturaBr. Ainda não publicou livro e nem se importa com isso, quer tentar propagar a Literatura cada vez mais. E-mail.









Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548