Então virá o dia em que te olharei
E não me verás
Teus olhos miúdos e vivos
Antigo olhar que me atravessa e é feito de memória e carinho
Nada terá a me dizer.
Então virá o dia em que se quebrará a concha de afeto e
Amizade
E mesmo os nossos sangues misturados não nos alimentarão
Alma e corpo
Mas ainda assim ainda te amarei
Acima de todo o oco
O silêncio vazio do mundo
A violência desonrando tudo
E as incertezas se haverá futuro.
Ainda assim te amarei, não há mais volta
Mesmo que não me entendas e que as vendas
De Ilusão que cobrirão teus olhos
Não te permitam ver a mim e à minha dor
Ainda assim terei por ti apenas o que hoje sinto
E sempre sentirei: o mais profundo amor.
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de pai pra filho.
(2009)
*
BALADA DO GAROTO MORTO DA ROCINHA
Qualquer canção de amor agora é dura
o pequeno corpo jaz, é um boneco frio
nos braços de seu pai no colo da má hora.
Qualquer canção de amor, mas não agora,
que a dor é intensa, dura e não vai embora
como é dura a bala que não ouve a quem implora
e nem sabe que hoje é quase carnaval.
Qualquer canção de amor aqui se desfaria
na noite escura como o dia-a-dia
de quem não mais espera por folia
e a fantasia do que um dia fôra
como o pequeno corpo agora jaz
na fria não-razão do nunca mais.
Qualquer canção de amor, então, por seu algoz
a mesma idade, a mesma ausente paz
a mesma ausência, o mesmo tempo mau
onde era pra ser sonho, vida, praia, futebol
agora apenas medo, grito, sangue, desespero ao sol.
Qualquer canção de amor agora é cal
pedra, madeira, areia, vela , choro, funeral
o pequeno corpo jaz, já não significa nada
nesta cidade onde hoje é quase carnaval.
(2005)
*
das coisas que a Deus pediria retorno
para tornar a viver, de alma leve,
sem a sofreguidão dos dias breves,
refletindo um céu que ainda não conhecia :
a misteriosa estrela que se mexia,
meu pai num jipe chegando,
o aroma da chuva lavando
o cerrado às seis da manhã,
e o exato momento em que olhei
no olho dela, antes do primeiro beijo,
e descobri que a Paixão,
como a Lua, nunca foi de queijo.
(2002)
*
Feito Rubem
na “Traição das Elegantes”,
“ide-vos, noivos morenos,
minha tarefa é outra,
é não ser infeliz,
ser forte, quieto e sereno”
e espanar pela casa
tantos entes inumanos,
ungi-los com sagrados óleos
e batizá-los nos açudes
que brotam na foz dos meus olhos.
Ide-vos, noivos morenos,
que a vida lhes reserva a nata,
a luz dos dias amenos,
minha tarefa é menos grata
é verdejar meus desertos
e dar de beber aos meus negros
e abrir fronteiras no peito
no caos destes tempos incertos.
(1994)
imagem: desenho com esferográfica de Samuel Silva