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Guernica, Visto pela última vez: Dama e cavaleiro de negro da autoria de Rembrandt, Carta a Vlap, Como água em água e In girum imus nocte et consumimur igni, cinco poemas de Jorge Lucio de Campos

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 What do you see? (2013), Sophie Calle.


GUERNICA

a Pablo Picasso

Quem dera
um sonho

de acordar

Não que
houvesse

um ver
primeiro –

um rosto
posto em

seu regaço −

os astros
desfiados

no infinito –

pouco a
pouco



In:Através (Clube de Autores, 2019).







VISTO PELA ÚLTIMA VEZ: DAMA E CAVALEIRO
DE NEGRO DA AUTORIA DE REMBRANDT

a Sophie Calle

Aqueles pra quem
nada conta −

seja atrás de um
reposteiro ou de

um arado, de um
paiol ou de um

pulso magnético −

não sabem o que
fazem: um enleio

um risco, uma luz
de foco abrupto

um rubor de
gosto amargo



In: Véspera do Rosto (Clube de Autores, 2019)







CARTA A VLAP

a Italo Calvino

Querido Vlap:

Hoje dormi tanto e tão tarde que vi no céu a lua e uma estrela se beijarem tensamente. Tive uma vontade louca de bater com a cabeça nas paredes, mas me contive. Uma galinha apareceu no parapeito e me espiou por um longo tempo. Uma vizinha ficou regando o jardim, mas não pude ver-lhe o rosto. Ela estava de amarelo e se confundia com o sol. Por mais que tentasse explicar a cena, o seu vulto tornou-se inconcebível e, na medida que a admirava, não pude chegar a um consenso. O que será que torna tais situações embaraçosas? Quando voltei a mim, já não sabia do que se tratava. Talvez a sua silhueta se pareça com a de outras pessoas e uma mangueira d’água possa ser um visor de equipamento ou um tiro de canhão mais amável que de hábito. De qualquer forma, hoje dormi tanto e tão tarde que bebi uma Coca-Cola e sentei num pneu velho no canto do quarto de modo a parecer comum.

A cada um de meus movimentos, ouvia, contudo, um barulho de correntes se arrastando pelo chão. Em minha insônia, achei algumas coisas a partir de outras e, além delas, um caminho livre me conduziu para a janela de onde eu vislumbrava a mulher regando o jardim e a galinha beliscando o parapeito. Juro que fiquei indeciso, para não dizer perplexo, com tantas referências. O quarto parecia uma teia e o meu olhar se perdeu dentro de casa, em meio a alfabetos, rabiscos e números: “Eu te amo... Eu te amo...” foram as únicas palavras que consegui balbuciar diante de uma vaca pintada no papel de parede e da cadeira de balanço e das barras de sabão ao lado da banheira e do espaguete derramado no prato sobre a mesa e da garrafa onipresente de Coca-Cola entre as caixas de cereal nas quais já não havia o que fazer.

Com todo afeto,

Vlop. 



In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).







COMO ÁGUA EM ÁGUA

a Jorge Luis Borges

A madrugada naquele vilarejo era mesmo impiedosa. Pelo que contam, nela tudo congela: os humores mais íntimos, os mucos, as lágrimas. O que significa dizer que chorar para os moradores dali é uma ação inútil, se o fato que o motive for noturno.

Quando fomos para a cama, já havíamos feito amor no jardim de inverno, na sala de estar e na cozinha. Após tomarmos alguns goles de genebra e conversarmos sobre a vida, vimos que anoitecia e, em pelo como estávamos, o quanto isso era terrível.

Pus em nossos ombros uma pele de arminho comprada na quermesse. Deitamo-nos de lado, de modo a contemplarmos pela janela o vale que, naquela época, costumava verberar como nunca no painel celeste. Comecei a beijar a sua nuca e, a certa altura, virando-a para mim, mergulhei em seu olhar eslavo, assustadoramente azul.

E assim adormecemos, acompanhando o movimento pendular da lua. Era possível sentir que descia sobre nós, devagar, mas decididamente, como uma esponja a sorver toda a brancura viável de existir: a de nossos dentes e unhas, a do tapete de neve estendido ao inesperado das montanhas.

Só na manhã seguinte é que os nossos corpos, enrijecidos e quebradiços, foram descobertos. Estavam tão encaixados que ninguém conseguiu separá-los numa primeira ou segunda tentativas. A exemplo de nossos olhos – que se fitavam – os corações ainda batiam, tentando dizer algo daquela noite memorável. Palavras doces, mas silentes. Impossível saber quais eram.



In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).







IN GIRUM IMUS NOCTE ET CONSUMIMUR IGNI

a Guy Debord

1

Todos nós tecendo
à linha d’água

camisas brancas
de beldades cruas

onde o tempo enruga
a furta-cor ondula

2

Não buscar nos lábios
nem nos olhos

vermelhos, o mais
fundo que supõe

a tarde

3

Não falar da língua:
a mais linda

Persistir no ouro
da ferida, cristal

tenso, flor rasteira
forasteira

Manhã de astros
turvos curvos

mortos em tudo
vagos cegos

no silêncio

4

Eis o preço da noite
derretida, do vapor

que ruma ao mais
ardente comovente

da floresta



In: A grande noite perdida (Clube de Autores, 2019).








____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta, revisor e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2019), Sob a lâmpada de quartzo (2019), Paisagem bárbara (2019), Através (2019), Véspera do rosto (2019), O triunfo dos dias (2019), A grande noite perdida (2019) e Desimagens (2019).

 

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