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Hoje, para me sentir superior, decreto que o acaso se transforma em destino quando alguém repara. _ MARINA TADEU

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A centopeia pousou em mim e disse

vou-te contar


A cabeça a ver estrelas

Representamos a essência
sintética de todas as espécies
e ei-nos ainda coçando penugens
ao espelho. Procuramos explicar
porque é que a mais inóspita paisagem
numa galáxia distante já em nós brilha
perdulária como a vida. A incumbência
é observar: a louva-a-deus que devora
o macho para produzir mais ovos
a esponja assexuada morrendo até
que a membrana da sua atmosfera
íntima rompa para que renasça
a colónia de formigas que a tudo
se adapta na Phase IV, o repouso
metabólico de um urso sob raízes
fossilizadas que apetece abraçar
se de pelúcia fosse. A origem
desconhecemos porque contém
nela o papão de um estoicismo
indiferente: o nosso monstro
de inúmeras peças sobresselentes
adormecendo nos braços metálicos
por onde seiva esverdeada corre
_ _ _ …
um pobre neandertal ressuscitado



Larva

vivo no teu lábio
inferior e mordido
sou lagarta em
casulo fino
que o teu sangue
alimenta e aquece
como se não
tivesse dono


uma película breve
resguarda o largo
do meu voo
que a paixão
de um beijo humano
talvez levante
em abandono


até lá quando falas
com tanta vibração
instável como no início
inquieto me petrifico
e finjo dormir como filho
à espera do teu sono


Epulum funebre

No serviço destoa um prato lascado
como se uma goma de um fruto
primordial e muito ácido nele tivesse
permanecido e deixado a marca
de um beijo descaído. Ei-la na boca
fechada de um tubarão que se intromete
sem ter sido para aqui chamado.

Um prato com uma marca de nudez
revelando pardamente o âmago
da porcelana fina desafia o seu uso
no banquete fúnebre do profeta:
um danado que fizera de um desejo
o seu cometa.

O prato era dele um entre doze mas
não à vista. Desviam-no para a cozinha
onde uma mulher não registada reprime
grimas empilhando bifes crus
que tempera com deferência mui
sentida. Sal mais nada e que se dane
a mágoa a harmonia a civilizada rima.

Na hora de os servir os convidados
tão desgostosos boicotam os discursos
e fazem da memória uma tortura que aplaca.
Começam a arrepelar-se sem queixume.
Um alívio fero acossa-os e já não se
contêm. Há cenas indescritíveis
até ao seu desfecho: ao som de gotículas
caindo no lajedo onze esfolados
degustando mansamente a carne fria.

HEI, HEI TOURO… TOURO LINDO, HEI HEI!

É tão belo quando dizem os das lides
que o touro colhe quem o espicaça.
Vocês que não são portugueses
pensam em Hemingway e Picasso
e homens que fizeram da vontade
de ser macho a sua arte e na injustiça
que é desnortear o Mino no labirinto
implacável da praça - o círculo. Há
pouca glória no meu país pequeno
onde há séculos dizemos animais em
flor e que os de agora como eu
respigam para enfeite de uma
inspiração demasiado gasta para
perfumes puros, exóticos, delicados.
A tourada aqui é agora coisa de
maníacos esfarrapados em
trajes de luzes mas ainda a tradição
tão cruel tão incorrecta subjaz. A pega
de caras termina com um popular
um forcado puxando a cauda da fera
brava que contra ele atormentada
se vira para o colher e de quem ele
se implanta com os pés fincados
desenhando às voltas círculos
de corolas na areia.

Introdução à lavoura

Palavra comedida
é lavra comida

é a semente vazia

um bebé que pariu
o esquecer que se viu
um cão que traiu

é o ver se te avia

o pio de um só piu


O meu primeiro namorado

Quando era muito pequena e o cão
Pinóquio desapareceu fiz com
um novelinho de cotão o meu bicho quente.
Pensava que ia durar para sempre
e que da minha mão apertada
nunca fugiria. Passei horas com
ele planeando fazer um zoo no
bolso do meu pijama acrescentando
pernas de insectos. Deitei-me
no chão duro porque tinha medo
que caísse do boliche. Adormeci
depois do meu suor lhe ter dado banho.
Mas claro, também se chamava Pinóquio.



Menino de pio

Adormeço e um burburinho de vozes
em segredos e queixumes logo se instala
inclemente moendo desde o fundo que
cerca e oprime até ao sobressalto
que me acorda. Emerjo para o silêncio
suspeitoso do campo. Acendo a luz. Confirmo
que não chega ainda à primeira hora.
Agora nem o galo tem a dizer. Penso em
Sharon Olds escrevendo que os poetas
são aves a cantar para outras aves mas é tarde
para o desconhecido. Biólogos, zoólogos e afins
há muito advertem que os pássaros
quando cantam estão as mais das vezes
a demarcar seu território. Ponho as nocturnas
de Chopin para adormecer? Sim, para efeito imediato
não porque são maricas. Invento com saudades
do filho um menino d’anjo. Acaricio-lhe a crista
sem que encrespe e faço de conta que não escrevi.





Marina Tadeu é portuguesa mas viveu mais tempo em Inglaterra do que no seu país. Passou 30 anos de vida profissional como jornalista, tendo visto umas coisas pelo mundo. Mudou de carreira há sete anos para se tornar cuidadora de inválidos, portadores de deficiências e idosos. Encontra-se de momento em Portugal a recuperar de um esgotamento e a preparar o seu primeiro manuscrito, Nova Origem das Espécies.





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