("Diomedes being eaten by his horses", por Gustave Moreau)
Arcaico
Um poema seco
Como é seca a terra em que cresci
Fincar-me os pés na terra só para ver que nunca deixaram de ser
Raízes
O calor não afaga naquele lugar: ele oprime
Ele comprime até o intangível – porque intangível também o é: o pensamento, a razão.
Há muito espaço, há muito céu.
Se se quer ser preciso, não há fronteiras naquele lugar
Tudo é a extensão de umas mesmas poucas coisas
E o calor funde o que antes seria céu, o que antes era terra.
Se se quer ser preciso, a luz não é precisa, naquele lugar.
A exatidão foi deixada para trás - nalgum ponto em que decidiu - a luz - que a si não cabia
o papel de revelar: cabia a função de distorcer.
As coisas sublimavam.
As fronteiras das folhas, dos troncos, das pedras eram não mais do que um capricho.
Capricho que o ser que animava as folhas, os troncos, as pedras não almejava cumprir.
Tudo era a extensão de umas mesmas poucas coisas naquele lugar.
Ainda assim, há muito espaço, há muito céu.
Também o sentido.
Também o sentido, o significado, também eles escorriam para além de si.
Nada era exatamente aquilo em si, porque tudo se estendia até a próxima coisa.
Podia pensar-se que aquela paisagem era em si algo sublime:
A natureza terrena enfim curvando-se à unidade divina.
Aquilo não era sublime: aquilo era o inferno.
E aquele inferno se estendia - com força, seco, incômodo, inoportuno - para dentro de mim.
Sim, porque não se podia ser diferente naquele lugar.
Porque tudo era a extensão de umas mesmas poucas coisas.
Se não se era uma dessas poucas coisas, torna-se.
Eu não sou uma dessas poucas coisas.
Eu não sou dali.
Ainda assim, olhos para os meus pés: são raízes, fundas na terra seca daquele lugar.
Eu amaldiçoo cada dedo, cada unha, que tornou-se raiz.
Por qu'eu não sou dali.
Aquele lugar sabe qu'eu não sou dali.
Tudo é estrangeiro em mim naquele lugar - e ele sabe.
De minhas fábulas -
que me contam as minhas verdades,
que entretanto eu não consigo entender -,
Saem imagens que não pertencem àquela paisagem.
O meu folclore canta canções que não são dali.
E canta canções numa língua que não é a dali.
Meu arcaísmo mais profundo, ali, é simplesmente uma disfunção
Aos olhos daquele lugar.
Por que o arcaico nasce da terra, de quando o humano nasceu da terra.
De quando a terra moldou o barro do pensamento humano.
O barro do meu pensamento era de terra outra: não era daquele lugar.
Corto cada uma daquelas raízes.
Elas sangram como os pés de um corpo: não há dor.
Há apenas um longo alívio de saber-se enfim
hermeticamente fechado em si e diverso daquele lugar.
Atravesso a paisagem, e saio daquele inferno.
Meu paganismo, que vem de outras terras, eu carrego em mim.
O deus daquele lugar me é profano.
Espasmos de Epifania
A efemeridade é um insulto.
É somente nos grilhões da eternidade que sou livre.
O veículo de expressão da verdade é o exagero:
a verdade que jaz na simplicidade
hiperboliza-a.
É isso que quero dizer: que me contradigo.
Veja bem, a verdade é minha.
Não porque eu a detenha, mas porque ela só existe em mim:
o homem é o espaço em que coabitam verdades.
O mundo é simplório demais para conter verdades.
O mundo a si se basta
para necessitar de conter em si verdades.
As verdades são humanas, e somente humanas.
Hiperbolização do pó
- que sou -
eu não poderia gerar frutos outros que não o exagero.
Mas a verdade, se de mim habitante
- se minha, então -
Não é a lente pela qual vejo o mundo: é meu mundo.
E, ainda assim, as verdades, se de mim habitantes
- se delas sou servo, então -
Não são onipresentes: surgem em espasmos de epifania.
Rugido homérico de esfinges mudas:
“Tuas verdades são todas efêmeras”, elas bradam.
Minhas verdades são todas efêmeras
É tudo o que ouço.
Mas sei que ouço mal.
E ouço mal pois o que ouço não é minha voz:
É apenas o vento.
E o vento só fala do vento.
O que ouvi foi mentira, e a mentira está em ti.
É isso que quero dizer: que não me contradigo.
O exagero, ainda que não permita divisas claras,
É luz à qual já acostumei-me os olhos: vejo.
As verdades não são efêmeras.
Não o são pois têm, em seu criador, sua diferença:
sou eu quem eternizo no mundo minhas verdades.
Eternizo-as no mundo porque eternizo-as em mim:
Sou, de mim,
a criatura que se fez seu criador: minha própria utopia.
É somente nos grilhões de minha eternidade que sou livre.
Perversão dos deuses
dessa vida, a perversão dos deuses
não se esgotou em ato único:
esbanjaram sua imaginação
em minar aqueles que, deles,
sabiam os deuses, eram maiores:
Nós.
fizeram-nos cada um
e, nisso, uns sós.
Tuas tristezas, tiram-nas
De minhas mãos e coração:
Recolheram-me, covardes, à realidade
de minha pequenez – a pequenez do barro humano com o qual me moldaram –
e estipularam que,
antes de mais nada
antes de partilhadas
tuas tristezas são por excelência
Tuas.
riram, nessa estipulação, dizendo:
Última fronteira do humano, porque última fronteira do amor:
tantálica será a distância entre vós
e não é que não queiram a união definitiva
- o sentir da dor do outro primeiro em vossos corações –
é que não o poderão, riram.
se maldigo
essa última perversão divina
nela não me estagno:
não me importa que a distância seja
Intransponível
não me importa que não tenha nascido
com pés que não permitam trilhar tua vereda última
À merda os deuses, a distância e meus pés
se do outro lado do vazio do mundo
que separa eu de ti
sinto ainda a tristeza que açoita teu sono
e que agoniza teu dia
se eu a sinto em mim, como se minha também fosse,
porque não poderia trilhar, com minha alma,
o que meu coração já andou?
À merda os deuses, a distância e meus pés:
não sou do tamanho do barro com que fui feito,
mas da força com que o quebro.
dos sonhos com os quais o queimo
do (teu) amor que me consome e me recria.
À merda os deuses, a distância, e meus pés:
a mim me sustenta algo
que deus nenhum possui
que distancia nenhuma apequena
que pé nenhum assola:
Teu sorriso.
Se os deuses riram ao nos fazer humanos,
olvidaram que não nos fizeram demasiadamente humanos.
É só dizeres, amor
é só dizeres, que,
por todos os sonhos, lágrimas, cansaços, tempo, carinho, risadas, luzes
por toda a minha vida,
eu faço do vácuo, trilha
do impossível, vereda
da última fronteira do amor, meu ponto de partida.
E erguerei contigo, tua mão na minha, céus que mesmo Atlas se esforçava.
E partilharei contigo, tua mão na minha, do sal de cada lágrima,
E do doce de cada sorriso.
E fazendo, nós, a cada um,
Faremo-nos a nós.
É só dizeres: amor.
*Attílio Diniz de Freitas nasceu em São Bernardo do Campo e cresceu em Pindamonhangaba. Retornou a São Paulo para cursar direito no Largo de São Francisco. Hoje cursa LLM na King's College London.