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6 poemas do livro "Retrato do poeta quando devedor do aluguel", de Gilcevi

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um varão que acaba de nascer
ou da meritocracia

quando nasci
um anjo brasileiro saiu da sombra
me deu 10 reais
um revólver
um livro

e disse
bicho, agora é contigo
"Peace and Fascism", de John Heartfield
2016

tudo aconteceu muito rápido
numa semana
os fascistas tomaram o poder
na outra ana foi embora  
perdi o emprego
tive que pegar minhas coisas
meu semblante orgulhoso
e guardar no porão
da casa de minha mãe
beijar a mão morta de meu pai

um par de dias outra notícia
o amigo também perdera o emprego
e havia se matado
outros chegavam sem aviso
cheios de fúria e de fome
cansados demais para pegar em armas
novamente
josé me encarou com a vertiginosa lucidez
dos loucos e disse vou a brasília vou matar o presidente
foda-se a morte foda-se o cárcere
tenho a companhia de todos esses anjos
a me perdoarem a me guiarem
quem entre nós reinventará
não a roda mas a guilhotina?

minha geração sempre deveu aos deuses
e ao mundo

olhos de cão a quinhentos kilometros do mar
Pinterest
retrato do poeta falando sozinho

subir atirar papéis e absorventes
sobre a cabeça calva do deus
era este o início do poema

mas eu estava cansado
de imagens surrealistas
queria contar uma história
me lembrei

daquela vez
em que tive a oportunidade
de ir ao palácio das artes
conhecer o meu poeta vivo preferido

antes não tivesse ido
tivesse guardado-o apenas comigo livro
o poeta era um completo babaca
o poeta era um absurdo e envaidecido idiota
o poeta era um grandissíssimo filhodeumaputa
o poeta era um pervertido bebaco
o poeta tinha uma arma
o poeta tinha uma pedra
o poeta ainda acreditava no concretismo
o poeta tinha 27 anos e 5 catarrentos filhos
o poeta ganhava uma mixaria dando aulas de literatura na escola noturna
o poeta era um arrimo bastardo da língua
o poeta se via sempre numa selva escura no meio do caminho dessa quebrada vida
o poeta vendia crack e dava a bunda numa eivada esquina de ítaca
o poeta bebia descia a pombagira
o poeta batia ponto
o poeta se sentava ao lado de pernas tristes no fundo do ônibus
o poeta não pagava pensão
o poeta era um orgulhoso passa-fome
o poeta já havia matado 2 ou 3 homens
o poeta cultuava a palavra mulher
o poeta roncava em posição fetal dentro da palavra concha
o poeta era o cavalo de deus
o poeta queria trazer para junto de si o dinheiro a ventura o vinho as musas
o poeta havia retaliado a república inventando a cor azul
o poeta tinha a cabeça fodida de um menino fodido
o poeta me confidenciou um segredo terrível demoníaco
o poeta disse que a poesia há muito já havia morrido
Pinterest
antena da raça

meu primo havia acabado de sair da cadeia
veio me visitar perguntou
me falaram que você agora é poeta é verdade?
respondi sim sou
ele sorriu malandro e disse sempre soube
que você era covarde
Arte de Victor Bauer
a poesia nunca salvou ninguém

no último andar do prédio
meus amigos
2 cachimbos
100 pedras de crack

(minha morte passeia entre eles
com um cigarro frouxo na boca)
Foto de Cadu Passos
santa tereza

skatistas magricelos com tatuagens de cadeia
fumam maconha às 10 da manhã em frente o batalhão da pm
isso foi para roland barthes alguém pixou no muro do metrô
uma estudante de tranças & seios enormes sufocados
pelo uniforme de escola militar
se aproxima da roda & pede uma bola
todos riem & não têm medo & não têm pressa
você também ri & tem certeza
de que o mundo às vezes é um lugar legal
a parte de você que está morta tem fome
se debruça sobre o balcão do boteco & acena para o garçom
a parte que está viva se lembra do sonho perturbador
da noite anterior: dez mil anjos sodomitas
entoavam versos de roberto piva
ao redor do cadáver do bispo

um dos bêbados que batem ponto no bar
te vê de roupa preta & óculos escuros
& querendo agradar coloca theres a light that never goes out
pra tocar na jukebox
enquanto isso alguns quarteirões acima
a rainha com seu black pintado de loiro
está descendo ao seu encontro

você estava sentindo falta do frio do fim de abril
a literatura não é importante
basta esse dia & o primeiro gole de cerveja
você regurgitou a extenuada palavra homem
desatrelou os grilhões dos pés malcheirosos de deus
você tem algum dinheiro no bolso da jaqueta
mais tarde o banquete dos amigos
um novo amor

foda-se hamlet
a vida é boa



______________
gilcevié poeta e músico e vive em Belo Horizonte. Em 2016 publicou o livro-disco Os ratos roeram o azul (Letramento). Também integrou a banda Carolina Dizcom quem lançou os discos Se perder(2004) e Crônicas do amanhecer (2008). Atualmente é vocalista da banda Cadelas Magnéticas que lançou o EP Encruzilhadadisponível em todas as plataformas digitais.  Os poemas abaixo fazem parte do seu novo livro Retrato do poeta quando devedor do aluguel que acaba de ser publicado pela editora Letramento.

contato:
@gilcevi (Facebook/Instagram)                

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