E se nossa afetividade fosse uma forma antropológica de ver a natureza? Não separaríamos o real de uma indumentária ou roupa cultural pela qual cada lugar está como ponto de observação. Assim, nossas emoções, com a fisicalidade da natureza, estariam fixas aos pontos cardeais, latitudes e longitudes, que trariam as estações invertidas, a relação térmica trocada, inversa, quente-frio. E se a poesia for uma forma de colocar o real em métrica, em versos, com ou sem musicalidade interna? O antropomorfismo seria esta bagunça? quase dionisíaca de embaralhar o visível; a ciência por trás da experiência; o mito legado à origem de tudo que é comestível do ponto da língua-cultura. (Narrador poético) Se eu puder falar com Deus, Gil cantava. Atravesso isso não como orações, mas sim como a desintegração da cultura enquanto laço dominante, sofro minorias, a mistura do racional e do irracional, da psique ao logos cartesiano. Pois faço da escrita uma rede; uma textura polimórfica de afetos.
A poeta calí boreaz, em seu primeiro livro de poemas, outono azul a sul (editora Urutau), estabelece deslizamentos entre posições não fixas de olhar o entorno. Se temos nossa memória como uma bagagem de mão, é quase como dizer que o lápis é seu gancho, sua força motriz para lembrar-escrever.
A poeta narra seus poemas sempre de um ponto flutuante do eu. Ela não está no norte em Portugal, sua latência poética talvez sim. Mas é como uma bagagem-câmera que calí traria para o sul, para a transfiguração dos quadros, para a mudança da paleta do outono de lá-saudade para o azul dos trópicos — para a poeta se colocar, não como pessoana, mas, sim, como Bergson; o filósofo já estudou o que faz o tempo com relação à personagenalidade, e nem aqui falo de máscaras muito matizadas pelo estudo do teatro.
calí não personifica o estar aqui na praia de Ipanema coletando rolleiflex emocionais de um pôr-do-sol no posto nove. Sua musicalidade é deslocante do ponto de vista da observação, como se o eu falasse — não de um observatório astronômico do tipo Palomar, em que Italo Calvino descreve em camadas a realidade das coisas em focos cada vez mais infinitesimais — mas, sim, de um falar-canção do próprio transcurso da poeta entre veia biográfica e mimetização do mundo circundante. Muito apegado a insights fotográficos que seriam quase corpos-de-filmar, momentos sensoriais cotidianos deslizando e deslocando seu corpo-câmera para relações espaciais entre lá-e-cá, o afeto na poeta não tem ponto nenhum de referência, ele é aglutinante de tudo que encontra e agarra-se para foco e espaço de afecção.
Editora Urutau, Portugal & Brasil, dezembro de 2018.
Ilustrações de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira. Posfácio de João Almino.
Fernando Andrade, jornalista e poeta. Trabalhou durante dez anos como livreiro. Colabora no portal Ambrosia como resenhista de literatura e música. Faz parte do Coletivo de Arte, Caneta Lente e Pincel com textos de poesia e prosa. Participa do Coletivo Clube da Leitura. Tem livros editados pela Editora Oito e Meio e pela Patuá.
calí boreaz nasceu no outono, em Portugal. De origem parte do Ribatejo, parte da Beira Baixa, estudou Direito em Lisboa em meio às noites de fado, depois aventurou-se a leste, viveu um tempo em Bucareste, onde estudou Língua e Literatura Romena, e também Tradução Literária, até que atravessa o Atlântico rumo ao sul, no virar de 2009 para 2010, para viver no Rio de Janeiro, onde se entrega ao estudo e ao ofício do Teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O regresso do hooligan [ed. ASA, Portugal], de Norman Manea, e Lisboa para sempre [ed. Thesaurus, Brasil], de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul [ed. Urutau, dez. 2018], com posfácio de João Almino e ilustrações de Edgar Duvivier e A. Martins-Ferreira, marca sua luso-brasilidade e tem uma extensão fotonarrativa no instagram @caliboreaz— ferramenta dinâmica que complementa o livro com as imagens que o inspiraram e as que seguem precedendo novas escritas. Seus poemas também foram publicados nas revistas Mallarmargens, São Paulo Review, Plástico Bolha [Brasil], InComunidade [Portugal] e Palavra Comum [Galiza] e foram expostos em forma de videopoemas no Hyderabad Literary Festival 2019 [Índia]. [ www.caliboreaz.com ]