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Obra de Jacek Yerka em http://surreal148.rssing.com/ |
O Efêmero
Já não leem o que escrevo
no agora, julgam-me apenas
pela inconstância do relevo.
Morrem a metáfora e o olfato
nos olhares que agonizam
sobre a semântica do ato...
Efêmero, alguém no outro lado
teme pela vida que logo
cairá no mundo da língua vazia.
Aqui: o amor erógeno. E lá
(entre carros e sombras)
está o caos sem fantasia;
vultos, inexistentes em si
entreolhamo-nos. Às Ruas,
nós estaremos apressados
pela interminável respiração
que se alonga já sem fôlego
para os olhos que morrem
ao ver o mundo sem poesia.
Rio acima, instante nascente
I
Estava nuvem, dela
descendo. Límpido rio abaixo
é fonte da flor à raiz
(da capuchinha ao
inhame). Para pro-
ver futuro-semente
outonal, o refúgio do homem
bicho-fome afluent(e fluente)
onde peixe deságua
à boca dos caiaques;
onde terra é morte
vida, decomposição
à medida que o rio aventura-
(se)m temer a queda
II
Após abocar a morte
e o reflexo da tosca lagarta
já sem sua bromélia,
o rio bebe as pedras
e liberta as margens
(liberta-se) pra ser adiante
o mar que foi no céu
III
embora ledo, a fúria
(voraz cortejo) do rio abaixo
depois de muito contemplar
aliás, contempla-(se abisma)
estranho ao vilarejo.
Apesar, dia bucólico:
lar a flertar outono
(poço a ter patente)
arca das espécies. Empático
mordisca ribeiras; não lima
não arrasta tampouco furta
animal do instinto
VI
de súbito enfermo
(e inconstante sem reter-se)
morde o concreto
– regurgita almas
retorcidas, fomes
enlatadas; rotinas
extemporâneas que velam-se
(enquanto) lama a céu aberto
V
ressaca. As pedras
o barro longe das margens,
e coisas que rio desconhece:
o metal pesado, re-
jeitos nunca vistos
e incrédulo, quem:
o bicho-fome, a fo-
me faz rio, se outrora nu-
vem mistério sem cidade
de súbito, a morte
VI
(lagarta). Destino
rio abaixo não tem querer
é água que arrasta
o podre do tronco,
o vital do instinto – o voo
da bromélia afoga-
se para estar peixe
poesia rio acima; renascer,
instante nascente.
Plenitude – chuva por nuvem
I
Tragar o mar depois morrer
açucarar-se. Contudo, chuva
ao largo, desperto
doce-água e sangria,
nuvem no incerto
fui chuva a pouco
não, não havia céu
tampouco campo
senti sede no açude do gado
eis-me agora, boi confinado
II
Tragar o mar depois morrer
açucarar-se. Contudo, chuva
deveras ao incerto:
pólen fértil e fatídico,
nuvens no deserto
fui chuva a pouco
não, não havia céu
tampouco árvore
respirei sombra na semente
eis-me agora, flor indolente
III
Tragar o mar depois morrer
açucarar-se. Contudo, chuva
deveras ao incerto:
céu cálido e salobro,
eis-me não liberto
água doce a jorrar
mas não, não morro
(tampouco viverei)
se não penetrar a terra e ser
plenitude, prefiro ser nuvem
A Crônica de outono
I
Sou eu aquele invisível
homem
que tu assistiras passar
anteontem
de jornal dormido
de notícias
e fotos de inverno...
Sou eu aquele notável
homem
de primavera lembrado
de verão
e porre de chuva
que tu leras
na crônica de outono...
II
Sou eu um homem notícia
esse invisível
e notável
calendário que o tempo
renova
a cada novembro
nas primaveras que te dou,
nos outonos que te sinto...
Crônica de outono ao vento
Hoje é o que sou
homem jornal não lido
de notícias
e fotos de álbum fechado
pretérito imperfeito
mas homem do sempreamar
e não de uma só estação...
III
Eu sou a notícia verbo presente
transitivo
nas ruas do vital poema
que na primavera dos dias
recolhe as tardes
e acolhe as tardes
e coleciona as noites
a cada morte não nascida...
Maria e José e a Família
I
Às seis acordam (quando não antes)
José e sua impessoal família.
Escovam o amargor do sono
e gargarejam o pesadelo,
penteiam o espreguiçar
das noite-noitadas; e mal dormido
vestia jejum ainda, desconjuntado
no rosto leite coalhado
no cabelo pão esmigalhado
a bocejar sol requentado
José (e a impessoal Família)
neste dia, sem ser horário marcado
II
vestia jejum ainda, desconjuntado
José e a família. Neste dia
sem horário marcado
(após o gozo-de-mel
Eva e Adão, trajados
como há muito não se via)
amanheceram à janela
em aquarela, pintados
sob o orvalho e poesia.
Livres como o sol neste dia
enquanto José chorava
para íntimos risos, estava Maria.
III
Em primeira pessoa, estava o José
Alves e a sua Família; aliás,
neste dia, acordaram tarde.
O trabalho ficou no centro,
fechada no livro, a escola
no bolso furado, o mercado
e o almoço foi em Família.
Neste dia, José se ajoelhou.
Maria (já de oito semanas)
antes da boca, incontida, bem
ser/vida entre anseios, engravidou.
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Delalves Costa(13 de dezembro, 1981) é escritor e poeta com 7 livros de poesia publicados: COISAS que faltam em mim (2005); O Menino dos Cataventos na Rua dos Passatempos (infanto-juvenil, 2006); “Considerações Pré-maturas & Outras ausências” (2008); “Josseu Solta-inventos e as Invenções do infantiletrando” (infanto-juvenil, 2008); “Fragmentos e iluminuras do discurso pré-maturo” (2013); “Inacabamento, a eterna gestação” (2016), e “O Apanhador de Estrelas” (Becalete, 2018; 2ª edição Class, 2018). Formado em Letras Licenciatura-Plena Português e Literatura Portuguesa, é mestrando em Mestrado em Educação Profissional na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/Uergs, Unidade Litoral Norte – Osório. Profissionalmente, professor de português, literatura e texto técnico na rede pública de ensino do Rio Grande do Sul. Pesquisador nas áreas de ensino, literatura e cultura locus-regionais do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.