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Celeste Network |
OUTONO
Há um poema em cada leitor.
Único. Como esta noite de quase outono,
de folhas murmurantes. Este instante.
Um céu que não se repete,
já passou.
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"Grandpa's Attic", de Maarten Hof |
SÓTÃO
Poderia assobiar sempre que passasses.
Não sei. Não aprendi.
Estão cerzidos, na barra da minha saia,
os temores de minhas bisavós.
Queria sussurrar-te muitas noites de amor.
Não posso. Vela minha voz
o silêncio da espera
na sacada noturna de meus príncipes.
Guarda esse baú, vazio, de enxoval,
a menina que repete em seus passos
o andar eterno de todas as mulheres.
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"Two O'Clock", de Jay Long |
CORRE UM COELHO BRANCO COM UM RELÓGIO
É preciso dizer que não se tem tempo.
Não há tempo para viver, para respirar.
Corre um coelho branco com um relógio.
Atrasado. Atrasado. Sempre atrasado...
É preciso ser ativo, produtivo.
O tempo dos relógios está sempre a passar.
É preciso dizer que não se tem tempo.
Ou ninguém vai lhe levar a sério.
O tempo é mistério. O tempo não tem dono.
Um relógio atrasado marca apenas o sono. Nunca o sonho.
É preciso dizer ocupado, ocupado.
É preciso dizer que não se tem tempo.
Vai que alguém resolve lhe amar?
É preciso estar sempre preocupado, ocupado.
Ou podem achar que você é o culpado
pelo mundo estar como está.
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Arte de Pablo Picasso |
BAJO LA LUNA
Uma mulher caminha só
nas ruas de Porto Alegre,
o coração nos tímpanos.
Una mujer camina en las
calles de Buenos Aires.
Solo la luna la ilumina.
Uma mulher caminha na rua.
O medo dá vida às sombras.
De qualquer arbusto uma ameaça.
É século 21.
Una mujer camina.
Ella no desiste.
Las mujeres siguen.
Uma mulher, na rua.
A caminhada da mulher
ainda é um susto.
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Bored Panda |
NOVAS VENEZAS
Na Rússia, é permitido bater na mulher
uma vez ao mês.
Isso, se não lhe quebrar os ossos.
Se quebrar os ossos, aí não.
Mercador de Veneza, a Antonio
era permitido cortar-lhe a carne
desde que não se derramasse o sangue.
Escapou-se, mas na Rússia, no século XXI,
nas mulheres só não se pode quebrar os ossos.
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Maria Alice Bragança. Nasci em Porto Alegre em 9 de janeiro de 1958, talvez um dia de temporal, como ocorreu em vários aniversários dos quais me lembro nesses tantos anos. Jornalista, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio de jornal, fui também professora de jornalismo e artes visuais. Os primeiros poemas, escrevi por volta dos 14 anos, impactada com a leitura de Drummond. A poesia tornou-se, então, parte imprescindível da minha vida. Publiquei poemas em jornais, antologias e um livro individual, “Quarto em quadro”, em 1986. Mantenho, sem periodicidade, o blog “Alice & Labirintos” (alicelabirintos.blogspot.com) e participo do coletivo Mulherio das Letras (RS, Portugal e Europa).