![]() |
Editora Penalux |
Uma ‘combustão’ epistolar
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
O Romance Epistolar é gênero literário caracterizado por uma narrativa escrita, principalmente, mas não exclusivamente, através de cartas. Epístola vem do latim epístula e do grego epistole. Sinônimo de carta, gênero cultuado desde a Antiguidade, principalmente, em termos bíblicos e durante o Império Romano. Quase adormecido como gênero de manifestação literária durante a Idade Média, ressurgiu no Renascimento (século XVII) na forma do então denominado romance epistolar, que teve seu auge no século XVIII. Desde então, tem sido gênero constantemente revisto, em deslizamentos conceituais, mas de alguma forma, sempre atuante, em maiores ou menores proporções, no meio literário.
Neste gênero estão classificadas obras como as Cartas Persas (1721), de Montesquieu, Pamela (1740), de Samuel Richardson, A Nova Heloísa (1761), de Jean-Jacques Rousseau e Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), de Johann Wolfgang von Goethe. O declínio de tal gênero deu-se em boa parte em virtude das grandes mudanças na sociedade e também pela falta de criatividade para perpetuar a popularidade dos romances epistolares. Entretanto, mais recentemente, tivemos (e falo de memória), A Estranha (1974), de Stephen King, A Cor Púrpura (1982), de Alice Walker, A Caixa Preta (1987), de Amos Oz e Crônica da Casa Assassinada (1973), de Lúcio Cardoso. Mas, talvez aquele que se gravou na memória de um público mais amplo graças às inúmeras adaptações para teatro e edições em películas cinematográficas, parece ter sido mesmo As Ligações Perigosas (1782), de Choderlos de Laclos, que narra as grandes sacanagens cometidas pelo Visconde de Valmont.
Os ficcionistas lançam mão do gênero para obter uma aproximação mais fidedigna de seus leitores, uma vez que este exclui a necessidade de um narrador em primeira ou terceira pessoa onisciente, já que é o próprio personagem (ou as personagens) que nos relata a história. A falta de um narrador propriamente dito faz com que tenhamos uma narrativa nem sempre tão bem organizada ou linear, uma vez que as cartas são apenas pontuais, não nos descrevendo, em muitos casos, o que aconteceu no período entre uma carta e outra. Outro recurso narrativo utilizado para a criação de um efeito de maior realismo é o uso da língua com uma maior liberdade, mais coloquial.
O romance “A combustão”, gestado à quatro mãos pelos escritores Cefas Carvalho e Jeanne Araújo envereda na seara epistolar. Estruturado em 44 cartas trocadas entre os protagonistas Gregório e Hilda, assistimos ao desfilar de um caso amoroso tórrido (cheio de reviravoltas, tentativa de suicídio, mal-entendidos, traições e subterfúgios), acontecido entre os dois 30 anos atrás. Ele agora, já um senhor de sessenta e três anos se corresponde com ela por cartas, preso que está à uma cama de hospital. Ela, uma respeitável senhora, viúva e avó estremada responde as cartas (isso depois de ‘passar o rodo”, em quem encontrou pela frente em decorrência do ódio que alimentou pelo marido que a mantinha naquela velha condição de dono/mulher objeto). Em verdade, Gregório nunca passou (e até hoje se mantém assim), de um bon vivant do sexo, um pervertido inveterado. Hilda sem maiores horizontes sexuais que a ligassem ao amor propriamente dito, embarcou nesse navio e gostou. As mil maneiras de amar... Temos aí, em tal estruturação romanesca, uma criatividade. As cartas são narradas sucessivamente pelo remetente, com propósitos específicos àquela destinatária que segue respondendo.
Digno de registro, e se pode observar nessa obra aquilo que o crítico Frank Kermode mostra, no ensaio Richardson and Fielding, quanto à prosa epistolar: “a prosa epistolar em geral e a obra de Richardson anteciparam questões colocadas, séculos mais tarde, por Joseph Conrad e Henry James, como a do desaparecimento do autor, pois a técnica de escrever por meio de cartas permite às personagens que falem com suas vozes características, sem a intermediação de narradores. Não por outro motivo, estudiosos consideram Richardson um dos criadores do romance psicológico, já que as cartas e o diário de Pamela apresentam os complexos sentimentos e reflexões de uma jovem de quinze anos.”
No caso específico de “Combustão”, como muito acertadamente escreve Ana Paula Olivier no Prefácio, os autores “explicitam a relação entre erotismo e poesia como uma testemunha dos sentidos, assim como nos ensinou Octavio Paz, em “A dupla chama: amor e erotismo”, os autores compõem uma eroticidade como poética corporal e as cartas como erótica verbal. Escritura que busca presentificar um discurso amoroso, cheio de representações que buscam mais o grão da voz e o sopro da vida”. Realmente estamos diante de um romance picante onde a tônica é o desejo sexual, que, se por um lado, faria corar Choderlos de Laclos no seu “Ligações perigosas” de 1782, por outro lado, confirma aquela feliz metáfora criada por Deleuze e Guattari de que “as cartas são um rizoma, uma rede, uma teia de aranha”.
TRECHO DA 2ª CARTA DELA:
“Tudo aconteceu no banheiro do escritório dele [do marido dela]. Num cubículo. Em pé. E foi o sexo mais maravilhoso que eu tive. Com você ajoelhado aos meus pés. Lembro que gozei na sua boca, uma, duas, três vezes. Depois você me virou de costas pra você e eu senti sua virilidade roçando em minha bunda. Você me disse ou ouvido: implora por ela. E eu implorei. Pedi, chorei. Até que você me penetrou, de uma só vez. Aquele membro duro me rasgando por dentro, me preenchendo toda. Sufoquei um grito. Mordi meu lábio. Agarrei-me à parede. Enquanto você ia e vinha dentro de mim, continuava a me falar ao ouvido. Senti o orgasmo se aproximando e me entreguei completamente ao prazer. Quando tudo terminou, minha visão turvou. Mas eu não queria que acabasse. Eu não queria que acabasse nunca mais.”
Cartas de amor assim, onde a sexualidade está exposta sem peias chegam a provocar o leitor naquilo que para uns é tabu, para outros, todo um prazer. Os autores conseguem, sem dúvida, provocar um forte estímulo no leitor ao ler as cartas, tomado que é de um, por assim dizer, voyeurismo literário ante a excitação sexual sugerida. Seja como for, um voyeurismo não somente como atividade erótica, mas também observando a maneira de comportar-se ante amores, interdições, preconceitos, tabus e desejos proibidos.De qualquer sorte, tenhamos em mente que as correspondências estão a serviço da criação literária, não se trata de libertinagem gratuita. São atraentes também, e é preciso que se saliente, porque podemos acompanhar o amadurecimento dos personagens, as mudanças do pensamento e do foco do desejo/amor entre os dois. Um campo inesgotável de descobertas. A idade chega mais o espírito humano não envelhece. Na 7ª carta ele escreve: “Tanto que, mesmo nesta cama, sem sentir minhas pernas, sem sentir nem mesmo o nervo que pende entre elas, minhas recordações são exatamente sensoriais, decorrentes dos prazeres do corpo”. E na 11ª carta: “Termino esta missiva com o desgosto de receber o médico e a fisioterapeuta, que acreditam que nunca mais voltarei a andar. Que besteira, meu espírito, que é o que importa e a parte melhor de mim, que ninguém há de domar jamais, corre, anda e voa por onde eu bem entender”. Kafka escreveu (em uma carta) que “escrever significa abrir-se em demasia”. Escreveu também que as cartas “são o único lugar onde é permitido exteriorizar tudo”.
Os e-mails e as Redes sociais, hoje, substituem quase que totalmente a correspondência postal da humanidade. O suporte mudou, a linguagem também mudou. A disposição de tempo já não é a mesma. O modo de viver é outro. Mas será que existe espaço para a literatura epistolar nos dias de hoje? Em tempos onde os usos da tecnologia revêem conceitos de tempo, espaço e modus operandi na comunicação, haverá ainda espaço e alcance para a literatura epistolar nesse contexto contemporâneo? Certamente, a escrita de si, cujos mais antigos gêneros são a correspondência e o diário, continua forte nas publicações da Internet. Alguns textos nessa linha viraram até livros, outros constituem espaços de criação que dizem muito a respeito das escolhas, dos gostos e da criatividade de homens e mulheres que usam os diversos suportes para escrever uma outra história de suas vidas e do nosso tempo. O romance “Combustão”, é um belo exemplo dessa possibilidade de descobertas.
Livro: “Combustão”, Romance de Cefas Carvalho e Jeanne Araújo. Editora Penalux, Guaratinguetá - São Paulo, 2018, 140p.
ISBN 978-85-5833-445-7
Link para compra e pronto envio: https://www.editorapenalux.com.br/loja/combustao?tag=casti%C3%A7al&page=3
____________
Jeanne Araújo nasceu em 1968 em Acari (RN) e reside em Ceará-Mirim, no mesmo Estado. É professora na rede pública, poeta e escritora. Lançou os livros de poesia Monte de Vênus, em 2011 e Corpo vadio (pela Editora Penalux), em 2015. É membro da ACLA - Academia Cearamirinense de Letras e Artes.
Cefas Carvalho é jornalista, poeta e escritor. Nasceu em São Paulo (SP), em 1971, mas, mora em Natal (RN). Tem publicados, os romances Ponto de fuga, Três, Carla Lescaut e Os olhos salgados (este também pela Penalux), além do livro de poesia Reinvenções e a compilação de histórias curtas Encontos e desencontos.
Krishnamurti Góes dos Anjosé escritor, pesquisador e crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo– Romance Histórico, Gato de Telhado– Contos, Um Novo Século– Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 27 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.