duas meninas
acho bonito o traço dos desenhos algures
e lamento por não conhecer tua filha
colo no quarto o que resta
memorabília
e lamento por não conhecer tua filha
naquele dia eu lembro
vi você de barriga
florida e de brincos
uma sandália de tecido
de sombrinha da china
e lamento por não conhecer tua filha
tarde demais e a cabeça já feita
perdoou a si mesma por ultrapassar
a linha: a via quatro não te pega
nos braços nem dá colo
nem peito
mas você sim
e se vissem nós três juntas
perguntariam qual das duas
é de fato
tua menina
necropolítica
escrever um poema a um homem
antes que o levem
antes que ele se perca numa
estrada vazia antes
que ele desista
de sua própria vida
escrever um poema a um homem
antes que o joguem água fria
ácidos ou gás antes
que em praça pública
depositem sua cabeça
numa bacia
escrever um poema a um homem
escrito em caneta rosa
com ponta fina
um poema que toque
e o faça tocar
cada parte
de sua estrutura
física
um poema que reduza a estatística
e que meu amor
traduz
antes que seja tarde
antes que o deus deles
apague sua luz
fim do mundo
quando M. deixou de odiar as formas de vida que não eram ele
um buraco se abriu
entre suas pernas
pronto, aqui
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O primeiro poema pertence ao livro Como se pesassem mil atlânticos (ainda inédito). O segundo e o terceiro poema constam na zine arroz feijão progresso,lançado este ano.
Bianca Gonçalves é formada em Letras na Universidade de São Paulo, onde também faz mestrado. É pesquisadora, professora, poeta. Mantém o blog “Bianca não é branca”
( https://biancanaoebranca.wordpress.com )