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Arte de Jonathan Wolstenholme |
[um já que jaz]
aqui jaz um poema.
nessa janela vazia
de onde escorrem gotas de chuva
da noite passada
jaz um poema.
um jeito, um pedaço
daquilo que era letra
e morreu
que era sentença
e se foi.
aqui jaz um poema
que não sente mais dor,
que se entrega ao cerco dos não-poemas,
que serve de exílio aos não-poetas,
que vai,
que vá!
pois pra tanto (a)deus
há de haver algum poema a mais
nessa janela vazia
de onde escorrem gotas de chuva
da noite passada
jaz um poema.
um jeito, um pedaço
daquilo que era letra
e morreu
que era sentença
e se foi.
aqui jaz um poema
que não sente mais dor,
que se entrega ao cerco dos não-poemas,
que serve de exílio aos não-poetas,
que vai,
que vá!
pois pra tanto (a)deus
há de haver algum poema a mais
[mudança]
eu não me lembro o que a gente deixou naquela primeira casa
eu não me lembro de ter encapado móveis
de ter me preocupado com os ruídos no andar debaixo.
eu não me lembro
se era casa ou apartamento
se era no fim da rua
se havia gente.
eu não me lembro se fomos de carro ou andando,
se fui carregada
se levamos algum cachorro pra viver junto.
me diz se era casa
se era no fim da rua
se havia gente.
eu poderia te perguntar também se havia um outro andar,
um segundo
ou terceiro passo
a andar
junto a nós.
se havia terra
vivendo embaixo,
se nos despedimos.
eu poderia te perguntar se você também soubesse
mas só se você soubesse bem
o que a gente deixou naquela primeira casa
depois dos meus primeiros meses.
se a gente deixou você
vivendo sozinha
e se foi.
se a gente te deixou no fim da rua
se com você ficava alguma gente
se você foi perguntada
avisada
se você queria mudar
se você queria levar aquelas coisas que a gente deixou na primeira casa
se você queria ser levada do fim da rua
se queria ir
embalar
sua própria mudança
para um andar abaixo
onde não há
onde não se via mais
(a) gente
eu não me lembro de ter encapado móveis
de ter me preocupado com os ruídos no andar debaixo.
eu não me lembro
se era casa ou apartamento
se era no fim da rua
se havia gente.
eu não me lembro se fomos de carro ou andando,
se fui carregada
se levamos algum cachorro pra viver junto.
me diz se era casa
se era no fim da rua
se havia gente.
eu poderia te perguntar também se havia um outro andar,
um segundo
ou terceiro passo
a andar
junto a nós.
se havia terra
vivendo embaixo,
se nos despedimos.
eu poderia te perguntar se você também soubesse
mas só se você soubesse bem
o que a gente deixou naquela primeira casa
depois dos meus primeiros meses.
se a gente deixou você
vivendo sozinha
e se foi.
se a gente te deixou no fim da rua
se com você ficava alguma gente
se você foi perguntada
avisada
se você queria mudar
se você queria levar aquelas coisas que a gente deixou na primeira casa
se você queria ser levada do fim da rua
se queria ir
embalar
sua própria mudança
para um andar abaixo
onde não há
onde não se via mais
(a) gente
[ciranda]
eu fico afoita
se olhar me lança
eu fujo à solta
se me balança
eu paro envolta
se me alcança
e me pergunto
que nem criança
se é recado
ou se é só dança
[janela]
no desajuste da cama recém-acordada
vejo pés retalhados,
travessas de travesseiros,
vielas de mão dupla
que vão
e persistem em deitar do lado oposto.
no caminho trilhado da cama
um lençol predisposto,
um amor mal disposto
que se acoberta de covardia.
porque a cama não se desfez
pra que se fosse embora
tão cedo,
pra que o sol do meio-dia
acordasse apenas
o um que restou
de dois co(r)pos
[em-tanto]
acendemos paixões na linha fina do coração.
ali, corpo e alma se misturam,
como culturas em áreas de fronteira.
a pele arrepia,
a mente ensaia novos passos.
não há divisão.
fogueira acesa no rastilho do peito
é arremesso vivo.
somos caçadores que miram em direção à própria aldeia.
no tiro incerto do desejo
vai sempre um pedaço de quem dispara
[ficção]
o dia em que aprendi sobre a torre de babel
não me trouxe o que era possível das línguas.
olho o quadro na sala e me sinto diante do reajuste.
dias atrás lembrava com pesar da morte
de quase duas décadas
sem saber que não saberia linguagem
para poder recontar estas memórias.
se o tempo corre, os signos também.
pois, se não sei mais signos de outro tempo
é possível que não haja mais
significado?
se não há convenção, estilhaçamento de vozes
não há mesmo signo.
se não há signo,
onde é que se situam os sentidos?
se os sentidos se foram, a dor também.
sem dor não há morte.
onde, então, vives agora?
me pego incessante nas desativações da linguagem.
lendo virginia woolf,
penso no tempo e seus rastros
nos avisos
sobre a melancolia e o riso.
já não sei se choro a falta
ou se rio o que vem.
pareço pisar em pedras
enquanto cantarolo no chuveiro
e as gatas me olham interessadas.
não há voz que saia sem amargor.
é que não nasci para cantar.
que registro é esse que nos encanta na matéria
e alavanca para o fim?
imagem descabidas.
não é que não houve amor.
é que não houve luto.
pude, no dia depois de ontem, assumir as rédeas
da autoficção.
enquanto os filmes me falam de roteiro,
penso que se tivesse chorado sem peso
não carregaria tantos tijolos no peito assim
mas me falaram sobre o céu e as cores do arco-íris.
ah, se pudesse ter chorado.
diante do descanso, riso.
e a dor da tragicidade cômica me enrijecendo.
que houvesse pranto ou que houvesse riso,
não haveria vida.
só um pouco de linguagem
ou língua de babel.
não o suficiente pra deixar as conjecturas de lado
quem não tem tempo pra isso que não ande assim,
tão seguro
porque viver, olhar o quadro e chorar
ou sorrir
é se esquecer do dizer
e o silêncio, deixa, o silêncio
é o mais bonito anonimato da linguagem
o mais singelo ato
cheio de verbalização inócua.
é um furo preenchido
um tanto, um vasto pedaço
de mulher enclausurada.
_______________
Natural de Jacareí, interior de São Paulo, Francielly Balianaé jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense, mestra em Letras pela Universidade Federal de São Paulo e especialista em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas. Escrever poesia foi a maneira que encontrou para se aproximar do universo literário, que encara como objeto de pesquisa mas também como afago antes do sono. Pesquisadora da obra de Eduardo Galeano e das representações de gênero na literatura latino-americana, a autora vê a escrita como resultado de seus olhares para um mundo onde jornalismo, ciências humanas e literatura se mostram como um campo mimético aberto, com fronteiras tão permeáveis quanto as de um poema em processo de realização.