Revelation painting (s/d), Chris gebhardt.
[a Samuel Beckett]
Para escapar de seus pensamentos, Vlado escalou o balcão e escondeu-se entre tonéis. Qualquer um poderia ter feito o que ele fez, mas o modo como o fez era impagável. Uma criança inepta não faria melhor, nem um velho decrépito ou uma mãe perdida, lacrimosa e compelida. A lua azulava o mar e o próprio jardim perdia a sua forma de coração. Era impossível para ele ser ele mesmo, em meio a tantos subterfúgios carregados de ardor e simpatia. Imperturbável, manteve-se agachado, enquanto fazia caretas para a massa espessa do quadro noturno.
As nuvens, ao mesmo tempo enormes e indiscretas, observavam de longe o seu segredo. Mesmo os bugios e os monges não se furtariam a bisbilhotar os seus desenhos e rabiscos. Em plena campina e encravado no altiplano, imaginava rostos presos por pregos nas costas das pessoas. Contra a sua vontade, o vício se perpetuava tanto que já não havia lugar ali para a felicidade, mas tão somente para o nojo.
Após se vingar na rotina enfadonha dos que devem porque temem, os seus olhos se fecharam como janelas quebradas e havia um tom aborrecido em seu semblante, algo repulsivo a se contrair e alastrar. Naquele momento, imaginou-se bebendo Bacardi num botequim sem nome, comendo trutas e guardando flores em livros empoados. Olhou para o lado e viu-se nascendo de novo, sacudindo a cabeça sob a chuva, uma concha rachada ao balanço do vento. Logo lembrou-se, porém, de seu segredo e de que deveria guardá-lo.
Ergueu-se anguloso e começou a caminhar para, de novo, escapar dos pensamentos. Pôs uma pastilha na boca, coçou as costeletas e retornou ao quarto, à cama, sem sequer corar. Vlado era uma criatura estranha, mas, se alguém lhe dissesse isso, decerto, negaria. Mais ainda: ligaria o fonógrafo, aumentaria o som, livraria a música...
In: Desimagens (Bookess, 2018).
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).