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"meu corpo é uma cordilheira cretina" - quatro poemas de Victor Hugo Turezo

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Acervo pessoal

meu corpo é uma cordilheira cretina 
duas placas tectônicas que regressam do encontro
um avião voando a oitenta mil pés sem o teto
a estrutura de um prédio em decomposição
um pedaço enorme de terra urrando por reforma agrária
crise hídrica nas zonas industriais do peito
um pássaro com duas pedras cravadas na asa direita
cinco mendigos pedindo esmola na pedro ivo
chacina numa tarde de verão na monsenhor celso
hecatombe de sóis envelhecidos
cardume que se perde dentro duma cachalote
um funeral de artistas de rua
irène jacob fumando um cigarro em a dupla vida de véronique
deleuze sentado discutindo com foucault numa sauna
a possibilidade do suicídio na lituânia
três tristes tigres devorando guillermo cabrera infante
a disposição histórica em destruir amores silenciosos
uma fronteira de dez mil quilômetros entre a minha
incapacidade de compreender silogismos e a sua maneira
de interpretar o existencialismo em kierkegaard.

* * *

quando entrei naquele trem em rosário-sur
e vi a poltrona vazia ao meu lado
soube que nunca mais te veria
num mesmo continente.
entendi que ninguém
suporta permanecer num lugar
em que a morte arremete
três vezes no mesmo ano.
eu nunca te disse
mas parece que você anda carregando
uma cidade invisível nas costas
todas as casas, edifícios e monumentos históricos
se desenvolvem na tua clavícula.
e em sete horas eu estarei no terminal de retiro
pegarei o metrô e descerei em jujuy
e em sete horas você estará bebendo
mais uma garrafa de cerveja
e amortecendo palavras num caderno pequeno.
agora entrecerro os olhos,
leio pizarnik e choro.

* * *

o livro pendurado no varal
duchamp desvendado no 2666
como um filho da puta subversivo de meia idade.
te peço um pedaço de parede
pra escrever que aquele poeta francês
de quem você gosta tanto
metrifica versos catatônicos
esculpe vapores coloridos
fode uma vez por dia
esquece de ir ao supermercado
não verifica se há correspondências
é cego em silêncio.
a aurora dentro dum manicômio
instaurado em cada membro do teu corpo
a rispidez esquizofrênica
no modo em que você ingere cada metro de dia
o jeito que você fotografa
hipopótamos voadores no teu sonho.
queria que você esquecesse
tudo isso e conseguisse transbordar
somente uma palavra.

* * *

um tigre doente mastiga um pouco meu rim
cospe sangue
um sol desesperado
meu pai com miopia e três facas
enterradas no peito
minha mãe com fibrose cística
e sem uma parte da orelha
curitiba e todos os seus
petit pavês encardidos de mijo
a condição ininterrupta de nuvens sobrepostas
o que fazer com as coisas
que descem pela garganta
e arrebentam no estômago?
dentro de cada segundo
o mapa-múndi da minha incompletude
se regenera e aumenta
minha respiração quebra
e dela brotam pregos
e um megalomaníaco para cada instante.
um brinde à tua capacidade
de enxergar rinocerontes.




___________
victor hugo turezo nasceu em curitiba (pr), em 1993. é poeta, tradutor e jornalista. publicou minha massa encefálica despenca como se de um desfiladeiro (patuá, 2017); quando vagalumes morrem no escuro (edição do autor, 2018) e traduziu, junto com natália agra, bosque musical (corsário-satã, 2018), plaquete com poemas de alejandra pizarnik.  


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