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Amizade, poema em prosa de Jorge Lucio de Campos

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Thames painting - The estuary (detalhe: 1994–95), Michael Andrews.






 [a Michael Andrews]



1

Acabou de ler a própria perna. Deitou-se na relva, traseiro empinado, tostado de sol.

2

Impacientou-se. O amigo sempre vinha por ali, naquele horário, assobiando. Em verdade, parecia flutuar. Tinha vocação para isso. Cada passo estalava na relva, sangrando o silêncio que, no campo, era ouro e impressionista.

3

Havia um céu oposto ao que era antes. Talvez não houvesse motivo para marejar os olhos, a cabeça cheia de vagares, o corpo espetado por sensações. O mundo se espalhara.

– Está a caminho...

4

Por vezes, discordava de si mesmo. Pensou com os botões se deveria ter vindo ali vigiar a estrada, gastar o tempo tão pateticamente. Afinal de contas, talvez o amigo nem o reconhecesse, olhasse em seus olhos e perguntasse:

– Quem é você?

5

Uma cisma começou a miná-lo. Pôs-se de lado. Aproveitou para raptar um pouco mais da paisagem. Havia um galho de árvore, um poço abandonado e seixos nos cotovelos.

6

O fato é que não se deixaria misturar com o pó. Vaguearia pela estrada anotando os detalhes. Quem sabe, algo ocorresse e o esforço valesse a pena.

7

Estava ali desde cedo, quando a manhã se abriu bruna e desarranjada. Assistira às gradações, meio alheio, de pernas para o ar. Não deu para evitar um prazer que pregava sustos.

8

Ficar se tornou doloroso. Era fácil constatar isso entre as frondes. Com um dos flancos em vias de escurecer, notou algo entre os rochedos. Sozinho, de bruços, sobre a grama mosqueada, entrou num delírio indomável, sem respiração. Olhou fixamente para o verde que tingia as ilhotas ao norte.

9

Em pé. Não há matiz mais fulgurante que o do arrebol. A cor escapava do fundo das casas e a topografia líquida vibrava em flocos com um rancor divino. De qualquer modo, o amigo não passara. Tampouco seu vulto se tornara visível no horizonte. O dorso e a escápula se contraíram. Não seria fácil aguentar por mais tempo. Em meio a um nevoeiro, odiou-se com fervor.

10

Deitado. Tomou-o de assalto a esperança. Sentiu-se risível naquela posição. O braço paralisou-se contra o fundo ocre.

11

Difícil era o passo seguinte. A qualquer momento, o amigo surgiria na estrada e, então, decidiria o que fazer. A luz, a essa altura, se refletia na superfície polida do prado. O vento se entregava a uma marcha surda.

12

Alguém murmura e algo, em volta, emite um ruído. Levemente corado, ruminando sem nexo, o amigo era um guepardo.

– A vida é curta.

13

Em pé. Uma gota estouvada e, nos olhos, tudo se espalha. Era o amigo que vinha pela estrada. A última coisa que viu foram os cardos.


14

O que é a vida senão um vazio preenchido por vazios?



In: Desimagens (Bookess, 2018).







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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).


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