Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Fragmento onírico 42

$
0
0
Imagem: Gilbert Garcin





...Deram-me(?), não sei por que, um novelo inintrelaçável, e minha tarefa, justamente, era encontrar a ponta do fio desse novelo e puxá-lo(?); puxá-lo não sei para quê. Comecei com birra a fazê-lo, pelo veludo, minhas mãos não penetravam um centímetro sequer. Várias vezes atirei-o contra a parede, esperando que se dissipasse por si mesmo, o que, obviamente, não aconteceu. Melei a mão, tornando-a lisa e tentando incrustar os dedos pelo novelo, folgar os fios que lhe infligiam aquele inexorável entrelaço. Novo fracasso. Molhei o novelo, esperando que a água, escorrendo por entre os fios, os fizesse ceder um pouco. Enfiei com violência os dedos, forcei entrada, o dedo mindinho flexionava-se o tanto quanto podia, espremia-se pela superfície do novelo, aqui e ali, apenas pressionando-o inutilmente, fazendo a água se ir, gota a gota, pelo meu antebraço já cansado. Deixei o novelo escorregar lentamente de minhas mãos, caindo sobre o sofá, rolando ao ponto em que uma réstia de sol perpassava a sala advinda da janela. Rolou até ali, mostrando que sua forma esférica era afetada singularmente por pequenas imperfeições. Tentei arranhá-lo nesse momento, mas logo desisti. Coloquei-o em cima de uma mesa de madeira, próximo a mim. Puxei uma cadeira e sentei. Firme para o novelo, meu olhar, numa ânsia circunspecta, estudava-o. O desejo de encontrar a ponta daquele novelo deixou sôfrega minha respiração. Levantei e caminhei em direção à janela. Apesar de ainda cedo, a claridade da rua era excessiva, dois ou três passeantes iam ao longe. Fiquei fitando-os até desaparecem ao dobrar o quarteirão. Percebi-os ao ponto mesmo de esquecer completamente o novelo. Qualquer peso sumira de minhas costas. Meus dedos eram ágeis novamente. Voltei ao novelo. Pareceu-me, agora, mais indestrutível do que nunca. Mas pressenti sua lógica. Não havia como adentrá-lo. Nenhum fio havia na verdade ali. Ficava passando, lentamente, a palma da mão sobre o novelo, deixando os dedos pousarem ao fim. Questionei-me sobre a utilidade desse novelo que a mim nunca pareceu ser mais que uma bola sedosa de fios. Nunca o usariam para tecer nenhum pano, nem haveria de seus fios uma peça de decoração engendrada. O novelo ficaria novelo pra sempre, pelo menos enquanto se procurasse o fio que o desalinha.



Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548