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"Study for the smoker", de Loui Jover |
Adversa aos Classificados
Procura-se com urgência alguém que saiba amar e consertar encanamento. E que use chapéu. É preferencial que use chapéu, jeans e camisas que combinem com as minhas. Fator primordial. Não sou muito exigente. Porém, deixo claro em anúncio, que procuro alguém decente. Alguém que traga flores. Sem flor eu não passo. Sem agrado me distraio. Aceito vagabundo, caso seja essa minha única opção. E que seja atento o vadio ao meu silêncio, ao meu espasmo de orgasmo violento e que seja cordial, sem exagero clichê, e me diga amo você duas vezes por dia. Nada além da conta. Enfatizo que busco alguém que, por questão de conveniência, saiba ganhar ninharia para encher a geladeira e conheça o labor da cozinha. Eu adoraria comer especiarias feitas por suas mãos. E que leia Dostoiévski e muita filosofia. Exijo viver de amor, literatura e discussão. Plena da vida. Um belo par de luvas seríamos. Ratifico: Busco vagabundo ou qualquer outro. E que tenha bicicleta. Talvez acrobata, mas nada atleta. Não quero competição. Há muitas ruas em meu mundo e seria bom andarmos juntos a sentir o vento no rosto e engolir das horas o que não se vê. E, depois de todo passeio, cairíamos na cama e dormiríamos ou nos engoliríamos ou sei lá o quê. Deixo esse item a critério de quem lê. Em caixa alta, procura-se vagabundo. Ou que nem seja vagabundo. Aceito trabalhador. E que nem use chapéu. Melhor que eu diga precisa-se de alguém que saiba viver. Ou que nem saiba. E nem é preciso que traga flores. E que nem ame. Ou que nem exista. E já não exijo nada. Que eu viva sedenta esperando que toque a campainha, que o carteiro traga correspondência, que a máquina enxágue bem as roupas, que venha data de aniversário, que venha solidão, que me venha deus em oração e que eu receba somente o cobertor adequado para o frio. Que eu seja abençoada como aqueles que são precários e quase nada possuem na vida. Que eu seja a incompleta cena do capítulo seguinte. Que eu seja, antes de qualquer outro triunfo, humana acima de tudo, mulher em estado bruto e que eu viva à maestria de um trem que não se resume ao trilhar das estações.
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"Rainy Promenade", de Loui Jover |
Castidade da paixão
O dia claro e manso como uma sinfonia de tranquilidade bucólica. Grilos e seus afazeres, libélulas tão puras ornamentais, o vento acalentando os pássaros com o leve tocar de suas asas, as casas juntinhas e as pessoas sorridentes em janelinhas, a rua ao trânsito pacífico e, tudo que se movia, ou era estático ou emanava um estado de repouso absoluto.
Cordial.
Como se houvesse apenas vida e a infinita ausência dos conflitos. Os minutos eram celestiais, não fosse a descontente atirando-se da ponte e fazendo a pequena cidade sentir-se mundana. O universo era completo não fosse o drama de um vagabundo presenteando olhares com sua aparência inóspita, fétida e mortífera. Libélulas seriam mais poéticas não fosse o grito de Otávio, ao quinto tom de sua aura, espancando mulher enquanto agonizavam seus filhos — crianças tristonhas, amarrotadas, sujas e não humanas de tanta vergonha que sentiam. O claro dia seria magnífico não fosse o desamor ditoso visto por todos nos olhos de Catarina que amava e não sentia pudor e vagava pelas ruas desnuda de reparação e os vizinhos e os quarteis e as vozes alardeavam a loucura da moça tão jovem e já apodrecida e ausente de si. Os campos, extremos ao longe, ao redor da cidade, seriam bucólicos e servos de qualquer pensamento adequado à delicadeza não fosse a chaminé bufando, em negras nuvens, o produto, o táctil e o inesperado que cobre as mesas e farta, à míngua, todos os seres. E os grilos seriam grilos de mil cantos extraordinários e mágicos não fosse o sapato esmagador de um certo homem que não percebia a leveza e o encanto da orgia inefável da estética suave da cidade. Silente seria a tarde de sol ardente de raios lúdicos não fosse o tremor de mãos do senhor que vendia seus quilates e assombrava de ambição os olhos das jovens frequentes de igreja. Seria admirável qual voz de soprano a existência de cada objeto não fosse o corte, a indecência, a maldade violada deturpando a sorte dos viventes e seria formosa a amplitude de tudo não fosse a puta, o bêbado, a beleza em sexo da menina Angelina, dos beijos em saliva entre os casais que se engoliam na praça entre as árvores tão verdes de ramificações que protegiam os moradores quando despertos pela chuva. Não fosse a praga, a maldição, a chaga, a maledicência, a estupidez, a morte de crianças, a política, o empréstimo, a inveja, o escorbuto que acometia Miranda e a levava, dia pós dia, daquele templo diverso de anomalias.
Não fosse a lua minguante,
Não fosse a natureza revolta,
Não fosse o sonho impossível,
Não fosse eu,
Não fosse você,
Não fosse a vértebra quebrada dos anos.
Não fosse a figura pastosa nos olhos cegos. Não fosse a filosofia, a humanidade, o inseticida. Não fosse o mundo, seria tudo harmônica em perfeição à vida. Mas talha a natura do ser a sua cólera. A hipocrisia ainda reveste os muros do tempo. Não fosse o homem o mundo seria nítida a impressão da existência do belo e da graça animada das roupas no varal. Não fosse o excedente intelectual que decepa a virtuosa cegueira, seria perfeito e divino o ideal romanesco.
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Letícia Palmeira é autora de diversos livros nos gêneros romance, contos e crônicas. Publicou Artesã de Ilusórios (EDUFPB, 2009), Sinfônica Adulterada (Multifoco, 2011) e Diário Bordô e Outras Pequenas Vastidões (Multifoco, 2013). Seu primeiro romance, Sol e Névoa, veio ao público em 2015. Entre seus trabalhos mais recentes estão A Obscena Necessidade do Verbo (Penalux, 2016) O Porta-Retrato (Penalux, 2017) e parte da organização da coletânea Ventre Urbano (Penalux, 2016), que trouxe à tona a prosa de algumas autoras paraibanas. Letícia Palmeira é graduada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e, mesmo tendo nascido em São Paulo, é na cidade de João Pessoa que ela reside e trabalha sua ficção.