Poemas para metrônomo e vento
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
O filósofo italiano Pietro Ubaldi (1886-1972) em sua obra “As Noúres: Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento” identifica nossa época como a época dos “nervos”. Mas não se veja nisto apenas irritabilidade, inquietude, insaciabilidade. Há um outro lado importantíssimo: o aspecto evolutivo de uma nova criação biológica, o psiquismo. Segundo ele, o tipo humano está deslocando sua funcionalidade do campo muscular para o campo nervoso e psíquico nesse momento de acelerado transformismo que o planeta atravessa. Ubaldi identifica, - ainda que reconheça que é difícil o juízo a quem está imerso nessa época confusa-, uma paulatina deslocação de forças psíquicas que, por sua vez, excita outras deslocações, porquanto nada é isolado no universo; e os fenômenos das forças psíquicas obedecem às mesmas leis de coordenação e de equilíbrio a que obedecem também as leis da matéria. Com efeito Pitágoras que viveu lá no século VI a.C. já teria afirmado que: “Não sabemos senão em razão de nossa faculdade de percepção”. E isso quer também dizer, voltando à Ubaldi, que cada um sente mais ou menos distintamente, em meio à transtornante explosão de uma nova sensibilidade nervosa e espiritual, que se refletem em um novo modo de sentir que já não suporta as velhas formas da vida, mas impõe novas. É que a mente humana anseia desesperadamente, neste deserto de materialidade em que transformamos o mundo, por um alimento mais substancial, um contato mais elevado, uma nutrição conceitual que a sustente diretamente.
Lembra-nos ainda o pensador italiano, que tudo evolve e a evolução nunca se processou tão vertiginosamente como hoje. A vida é deslocação contínua do ser no tempo, para um lado, mas também para “outros”. Não se entenda isto, no entanto, como ritmo de movimentos astronômicos, redutíveis a anos, dias etc.; isso não é senão a medida exterior do ritmo, convencional e cômoda. A substância do tempo é o transformismo fenomênico que, no mundo humano, é evolução da vida e do espírito. Esse transformismo aparece como intuição, pressentimento de um real estado futuro, estado do ser humano hipersensível, que transmite e registra correntes de pensamento, noúres— neologismo formado de dois elementos gregos: nous (pensamento, espirito, inteligência) e rhéo (correr, fluir). significando, pois, "correntes de pensamento". Não se trata, portanto, de um fenômeno casual: é momento substancial e logicamente situado no curso da evolução biológica e das ascensões espirituais humanas. Se já não vivemos, viveremos cada vez mais, uma fase de extrema sensibilização perceptiva que não obstante resistências e lutas, se preparam para lançar as bases de uma nova civilização. Curioso isto, “fase de extrema sensibilização perceptiva”...
Muito bem; a leitura constante e intensa do que convencionamos chamar de literatura brasileira contemporânea, sobretudo a poesia, nos tem levado a refletir, para além de seu especto multiforme (forma), nessa extrema sensibilização perceptiva (conteúdo), que se esboça vagamente aqui em um autor, mais adiante em outro como recorrência, e em uns poucos com uma intensidade de vendaval. Ao lermos o último poema do novo livro da senhora Roseana Murray, “Poemas para metrônomo e vento”, deparamo-nos com a orelha da obra onde há rápidos dados biográficos da autora, e então fechamos o volume pensativos a recordar a leitura de há pouco, que se cruza com aqueles pensamentos do filósofo italiano. E uma coisa, de braço dado com a outra, nos faz deixar de lado um pouco, questões como estrofes, versos, rimas, metapoesia, intertextualidades e essa parafernália toda de formas ou formalidades. Hoje estamos mesmo para essências, já se vê.
Todavia, antes de seguirmos com a apreciação dessa resenha que se pretende peculiar, como é a trajetória literária da autora, saibamos mais um pouquinho sobre ela: em 2018, Roseana Murray que é graduada em Língua e Literatura francesa pela Universidade de Nancy, completa 39 anos de carreira como poeta. Desde a publicação de seu primeiro livro, “Fardo de carinho”, em 1979, a escritora já lançou algo em torno de uma centena de títulos, entre livros de poemas para crianças e jovens, livros de prosa destinada ao segmento infantojuvenil e livros de poesia não-infantil (alguns contemplados com prêmios nacionais e internacionais). É importante registrar ainda, que Roseana Murray, além de se consagrar à escrita de seus livros, desenvolve, ainda hoje, uma série de projetos que visam à promoção da leitura de poesia. Décadas e décadas de intensa atividade literária para chegarmos a esses “Poemas para metrônomo e vento”, a reunir 95 poemas...
Sabemos que o metrônomo é um instrumento que marca o ritmo das músicas. O seu funcionamento é construído para dar suporte a mensuração da passagem do tempo, permite que a música flua com maior organização e expressividade e assim, tempo e música se misturam metaforicamente a tecer a poética de Roseana que se pergunta sobre essa costura de tênues fios:
“A linha”
“De onde vem / essa linha fina / de costurar poesia? / De qual oriente? / De qual mil e uma / noites, / de qual dia? / De onde a seda / dessa linha / que borda, / que transborda / do papel / para o mar / e o céu? / De que estrela / desconhecida, / de que bicho / da seda?”
Abordando temas densos como a solidão, a morte, a angústia, a memória e as perdas, os poemas se sustentam em refinado jogo de linguagem que transparece apenas para revelar o que é simples e delicado no cotidiano que está em todas as coisas, sobretudo no silêncio. Este, visto não somente como necessário à apreensão das verdades da vida, mas, por outro lado, quando precisa ser quebrado. Um ouvido no silêncio e outro no verbo portanto.
“Noz”
“E se o teu silêncio / se partisse feito uma noz, / um cálice / e se fizesse música, / e rumor de um rio, / de um riso, / de passos sobre folhas / secas, / de fio de luz / esgarçando a noite, / ou chuva. / E se o teu silêncio / se abrisse / e desvendasse / uma escrita tão antiga, / perdida?”
A autora segue despertando verdadeiras epifanias, veja-se a profundidade existencial de um poema como: “O que te espera”
“Ancorado no cais / da palavra / um barco te espera, / um rio te espera, / no azul da montanha, / um oásis te espera / na orla do deserto, / uma miragem / te espera / na superfície da vigília, / a vida te espera, / o assombro, / o espanto”
E sempre um retorno ao fundamental da vida. “As mãos” nos faz relembrar o pensamento de Octavio Paz. “As palavras chegam e se juntam sem que ninguém as chame; e essas reuniões e separações [...] são regidas por uma ordem de afinidades e repulsões. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos”.
“As mãos querem / música / quando abrem / a caixa da vida / para que a noite / escreva estrelas / cadentes / e o dia o seu trigo, / seus girassóis. / As mãos querem / a água do poço / das palavras / que voam”.
Em outro poema, “Pasto”, a poeta cria por analogia. Seu modelo é o ritmo que move o poema, palavras em estado de abundância verbal, corrente rítmica que se manifesta em imagens e não em conceitos.
“Em meu pasto / de palavras, / por debaixo / da terra, / onde correm / profundos / os veios de água, / os veios do que / pode e não pode / ser dito, / onde uma luz / às vezes sombra / acende a música / oculta dos sentidos, / cavalos se aquietam / diante do abismo, / onde caem as horas”
E mais uma vez, e aprofundando o que já fora dito, o poema “O rio invisível” revela o talento da autora que se volta para perceber a poesia contida desde um simples rio, ao sol.
“A musica do rio / invisível, / que canta / conduzindo / os navegantes, / os sem rumo, / os perdidos, / os maltrapilhos. / Há que ouvir / essa voz distante, / para sair / do labirinto. / Há que buscar / as setas / que apontam / o nome: / aquele escrito / com o sol. / Só então / a alma pode / voar e levar / o corpo / e mesmo que a luz / desfaça suas asas, / será possível enxergar / na escuridão”.
Na agitação geral que vivemos, que é fragmentação mas é também restauração de pensamento, há correntes de pensamento que circundam o ambiente humano e nele intervêm, ativas e operosas, para guiar e iluminar. Em certos autores patenteia-se uma “inspiração” consciente, operando em plena luz interior, em que o sujeito conhece a fonte, analisa-lhe os pensamentos, com ela sintoniza e a ela se assemelha, buscando-a pelos caminhos da afinidade. A isto talvez, chamemos de supranormal, aquilo sempre mal compreendido pela ciência, que o quer relegar ao patológico, confundindo-o com o subnormal, que em verdade são forças do espírito, que tão frequentemente escapam à percepção comum e que muitos negam, simplesmente porque não sabem senti-las.
Que civilização sucederá à civilização materialista em que vivemos? É inegável a necessidade de um retorno ao espírito. Não somente reação ao materialismo, não apenas reflexo de cansaço em face de uma orientação que se mostrou impotente, com seus meios e métodos. Faz-se urgente uma retomada, em cheio, como jamais arrostada na História, uma revolução que avance, trovejando, das profundezas do espírito, que quer saber e deliberar a fim de guiar-se conscientemente na vida - Pietro Ubaldi novamente.
Uma obra como “Poemas para metrônomo e vento” ajuda-nos a ascender a novas fases de consciência. Inebria-nos com o cântico das grandes leis da vida, nos faz voar, leve, rápido, distilando intelectualidade mas, num sentido de orientação. Desperta afinal, ressonâncias noutras almas e isso já é muito. O mundo hoje, mais do que nunca tem necessidade destas revelações íntimas. Precisa destas afirmações de espiritualidade, necessita de quem grite, em tempos de materialismo e egoísmo desenfreados, a grande palavra da alma; de quem dê, em tempos de apatia e indiferença, exemplo de fé; de quem repita, as grandes verdades esquecidas. Confiram detidamente isto, e outras coisas bem próximas, em poemas como: “Geografia”, “Para caber no corpo”, “Nas paredes”, “A chave”, “Voo”, “Viajante” e finalmente “Vazio”, que transcrevemos:
“Antes quase no começo / do mundo, / quando as estrelas / diziam o caminho / e os pássaros eram / a fronteira entre / o céu e a terra, / as palavras ainda / buscavam a sua música / e os pés deixavam / a marca indelével / dos que passavam / em busca do que não / tinha nome. / Hoje, o vazio do que / está sempre abarrotado / de tudo / é o abismo onde caímos / todos os dias. / As palavras já não / se entrelaçam, / são ruídos roucos / e inúteis. / Há que reinventar / o tempo. / Largo e liso / feito um lago. / Espelho do que / um dia fomos”.
Livro: Poemas para metrônomo e vento – Poesias de Roseana Murray, Editora Penalux, Guaratinguetá SP, 2018, 110 p.
ISBN: 978-85-5833-323-8
(* )Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo– Romance Histórico, Gato de Telhado– Contos, Um Novo Século– Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review e Revista InComunidade de Portugal.