A morte, o risco, o grito
Viver é enfrentar riscos. Mais que isso: é assumi-los. Como ainda não sabemos quase nada sobre tudo, não temos muitas opções. Mesmo já maduros e marcados pela experiência, não deixamos de nos arriscar. Quando somos jovens, então, nem se fala... Se estar vivo representa um risco, digamos, "universal", também nos fustigam os que poderíamos chamar de "intensos" e "específicos". Exemplifico: o praticante de esportes radicais, o alcoólatra e o tabagista, aquele que se alimenta mal, tem hábitos desregrados e é sexualmente promíscuo estariam entre os que se arriscam "intensa e especificamente". Aqui o risco de sofrer seria consequência de uma ação assumida como algo que, por si só, vale a pena.
Há também quem se arrisca contra a própria vontade e o quadro se torna mais grave. Exemplifico: em tempos de guerra, quem combate o faz, muitas vezes, não porque quer, mas porque é constrangido (pela lei, por um ideal ou por qualquer outra coisa) a fazê-lo. Porém, a pior das situações é a de quem se vê obrigado pelas circunstâncias a assumir as consequências dos riscos alheios. Infelizmente, tais casos não são raros em nossa vida cotidiana. Exemplifico: o fumante passivo, o cidadão ferido em meio a uma bulha repentina no centro da cidade, o parceiro irreversivelmente contaminado e condenado à morte por um outro em quem − ao menos a princípio − deveria poder confiar, etc.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Indiviso
a Patricia Piccinini
Há os que não se cuidam, os que lidam com o perigo, os que gostam de arriscar-se e os que simplesmente não têm sorte. Estes irão primeiro. Os demais ficarão por aqui perfilados, contritos, atentos, à espera de um sinal, proposta ou sugestão. Há também os que − pouco ligando para isso − continuarão dormindo até o meio-dia.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Pedagogia dos monstros
a Jeffrey Jerome Cohen
Monstros, sejam quais forem, existem, mas não como gostaríamos. Tanto quanto temê-los nas páginas dos livros e nas telas dos cinemas, urge contê-los na vida, pois são extensões de desejos, projeções de potências, simples possibilidades.
Monstros, sejam o que forem, se acumulam em nossas almas ao nascermos, até não ser mais possível detê-los. Aí afloram e invejam, conspiram, odeiam, matam, destroem, violam, torturam, laceram, chacinam quem a eles se opõe.
Monstros, sejam quem forem, estão sempre entre nós, conversam e brincam conosco, dormem em nossas camas, dizem que nos amam, somos nós mesmos à espera de um chamado.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Melhor assim
a Emil Cioran
Nasci introspectivo: "Melhor assim"− disse a meu pai, após ver os brutos. Tornei-me seletivo: "Melhor assim"− disse a mim mesmo, ao conviver com tolos. Escolhi ser só: "Melhor assim"− disse a Deus, sem salvação. Hoje, no leito de morte, digo a ninguém: "Melhor assim"− logo estarei comigo.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Aquiles e a tartaruga
a Mark Tansey
Há um mundo de pó que não vejo. Cansei-me de narrá-lo. Um uivo corta a noite e avança. Paisagem inútil.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
Leda e o cisne
a Hanneke Wetzer
Não lhes foi permitido amar nem conhecer o amor. Perderam os dons do afeto e da atração que se esvaíram e retiraram de suas vidas. Já não formavam um casal, mas uma dupla de identidade suspensa.
Com o tempo, viraram corpos sem alma. Foram reduzidos à função, depois ao declínio e à morte inevitável. A pele endureceu e virou uma crosta. O toque se perdeu no espesso da carne. A sensação criou raízes no duro dos ossos.
O mundo à volta foi se alargando e engoliu-os por completo. Enfim, perderam todo traço de humanidade.
Restou-lhes a condição animal de estarem por aqui, de ficarem para depois.
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
In: O triunfo dos dias (Bookess, 2018).
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017) e O triunfo dos dias (2018).