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Gilgamesh e a gênese da literatura - ensaio de André Mellagi

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Gilgamesh - Jimmie Durham (2003) | Fonte: http://ensembles.mhka.be/







GILGAMESH E A GÊNESE DA LITERATURA

Gilgamesh, rei de Uruk, é o herói cuja história está na epopeia que é considerada a primeira obra literária escrita da humanidade, por volta de 2100 a. C., compilada a partir de diversas línguas mesopotâmicas. Sua sobrevivência ao tempo se deu através das descobertas arqueológicas das tábuas talhadas em escrita cuneiforme. A versão mais completa foi encontrada no século XIX, entre as ruínas dabiblioteca de Assurbanipal, na cidade de Nínive (atual região de Mosul, no Iraque).
A importância histórica da Epopeia de Gilgamesh está na apresentação prévia de episódios bíblicos como o dilúvio e a expulsão do homem do Éden. Para a literatura, retomando a ideia de gênese literária, temos algo que vai além de inscrições de códigos de leis e condutas,ou de louvores divinos e ritualísticos verificados nos primórdios da escrita. Temos um enredo. Temos um herói.
Inserido no universo mítico, Gilgamesh é o rei dois terços deus e um terço homem. Dos deuses, compara-lhes com a força e valentia, o poder irrefreado por nenhum outro. Do homem, sua mortalidade e a sujeição ao seu destino, conhecido somente pela decifração dos enigmas do sonho.
Sua ganância não encontrava rival que o equiparasse nem mulher que o prendesse: “não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos; (...) sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro, nem a mulher do nobre”. Os deuses, preocupados com o poder de Gilgamesh sobre seus súditos, clamam a Araru, deusa da criação, que fizesse outro ser para confrontá-lo, “que seja tão parecido com ele quanto seu próprio reflexo; que seja seu segundo eu, coração tempestuoso com coração tempestuoso”. Foi então que Araru criou Enkidu a partir da essência de Anu, deus do firmamento, e também partilhava a força dos demais deuses, mas era atrelado à natureza, com o corpo coberto de pêlos e comia grama junto com os animais; “era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra”. Intimidando os caçadores de Uruk, era invencível e desarmava as armadilhas, soltando os animais. Ao levarem a notícia da existência de Enkidu para o rei, Gilgamesh ordena que uma prostituta vá seduzi-lo. Por seis dias e sete noites, Enkidu, subjugado aos encantos da mulher,esqueceu de seu lar na natureza. Os animais o repeliram. Ele já não tinha força de viver como eles, “pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração”. A prostituta convence Enkidu a ir às muralhas de Uruk, ao templo de Ishtar (deusa do amor) e de Anu, onde governa Gilgamesh.
Apartado da natureza, Enkidu pelo coito com uma mulher conhece-se homem e adentra à civilização ao chegar à cidade de Uruk para desafiar Gilgamesh. A mulher ensina Enkidu a beber vinho e a comer o pão, veste-o com roupas e escova seus pêlos. Um sonho alerta Gilgamesh que os deuses enviaram a ele um companheiro que o ajudará nas horas de necessidade, mais forte dentre todas as criaturas selvagens e que Gilgamesh irá amá-lo como a uma mulher. Ao chegar um Uruk, Enkidu é visto como a imagem de Gilgamesh, o herói de divina beleza que poderá enfrentá-lo.
Gilgamesh ao tentar entrar nos aposentos de uma noiva prestes a se casar para ser o primeiro a desfrutar da noite de núpcias, Enkidu o detém e começam a lutar. Após intenso combate Enkidu reconhece a força divina de Gilgamesh, abraçam-se e se tornam amigos. Na Epopeia de Gilgamesh, ainda que fornecesse os indícios de uma relação homossexual e prefigurando como a primeira história gay da literatura, a relação de Gilgamesh com Enkidu é a relação de Gilgamesh com seu duplo. Enkidu atravessa uma transformação do mundo animal até o humano e sua beleza e feições são semelhantes às de Gilgamesh. Sua força adquirida dos deuses alcança o poder de Gilgamesh, que por sua vez encontra um adversário que é seu reflexo. Enkidu torna-se Gilgamesh imitando sua própria ganância.
Um sonho de Gilgamesh revela que seu destino é governar, ser justo e não abusar de seu poder, mas que a vida eterna não será seu destino. Gilgamesh e Enkidu dialogam sobre os feitos dos heróis, que inscreveram seus nomes em atos de glória. Somente uma grandiosa realização, que nenhum outro homem seria capaz de concretizar, faria que o nome de Gilgamesh atravessasse gerações futuras, tal Marduk que derrotou Tiamat e de seu corpo fez todo o mundo como relatado no EnumaElish, o mito babilônico da criação.
Gilgamesh tem a ideia de confrontar o gigante Humbaba, o protetor da floresta de cedros. Enkidu já conhecia essa floresta quando vivia entre os animais e alerta aos perigos envolvidos, pois “ninguém luta com Humbaba em pé de igualdade”. Gilgamesh o conforta dizendo que mesmo que caia em combate, deixará um nome que ficará para a posteridade. Procura auxílio de Shamash, o deus solar, que o guarnece com armas divinas. A rainha Ninsum, mãe de Gilgamesh, solicita a Enkidu, o qual considera um filho adotivo, que o proteja e o traga de volta em segurança. Ao partirem para a floresta de cedros, Gilgamesh vence Humbaba que lhe suplica pela vida. Porém, Enkidu convence Gilgamesh a matá-lo, e o faz junto com Enkidu.
Encantada pela beleza gloriosa de Gilgamesh, Ishtar, a deusa do amor, se oferece a ele, que a recusa expondo a desgraça daqueles que se iludiram com seus encantos. Furiosa, pede a Anu que envie o Touro do Céu para lutar contra Gilgamesh. Com a ajuda de Enkidu, Gilgamesh mata o touro. Um conselho entre os deuses avaliam que os dois extrapolaram na soberba e que um deles deve morrer. Enkidu então num sonho prevê que irá morrer e adoece. Os dias passam e o sofrimento de Enkidu aumenta, lamentando que não morrerá durante a batalha como se espera dos grandes heróis. Gilgamesh, desconsolado, tem agora a real percepção da morte, longe dos cantos fúnebres de glória, o fim absoluto que enxerga diante de si, o destino que lhe escancara, sem honras, dolorida e invencível. Em vão, clama a Enkidu: “que sono é este que em seu poder te mantém? Estás perdido no escuro e não podes me ouvir”.


Gilgamesh - Jimmie Durham (2003) | Fonte: http://ensembles.mhka.be/



Em desespero, Gilgamesh vagueia pelos campos e pastos sabendo que encontrará o mesmo fim que Enkidu. A porção humana se sobrepõe à porção divina e nenhum poder seu conseguirá desviar de seu destino: “isso que meu irmão é agora, o mesmo serei quando eu morrer”. Peregrina então atrás de Utnapishtim, o homem que ganhou a imortalidade, o Noé babilônico que conseguiu sobreviver ao Dilúvio. Uma extensa jornada Gilgameshpercorre e aos poucos sua beleza e vigor apagam-se numa figura abatida, vestindo apenas peles de animais. Siduri, a fabricante do vinho, pergunta o que aconteceu, se ele era mesmo Gilgamesh que matou Humbaba e o Touro do Céu, agora irreconhecível pelas faces queimadas pelo calor e pelo frio e com o desespero no coração. Gilgamesh responde que por causa de seu irmão (Enkidu), tem medo da morte e vagueia pelas matas e campos sem descanso. Assim também explicou quando finalmente encontrou Utnapishtim, que disse a Gilgamesh: “não existe permanência (...) como são parecidos os adormecidos e os mortos, eles são como um retrato da morte (...). Quando os Anunnaki, os juízes do mundo inferior, se reúnem com Mammetum, a mãe dos destinos, juntos eles decidem a sorte dos homens. Eles distribuem a vida e a morte, mas o dia da morte eles não revelam”. Gilgamesh, antes o rei dos homens de Uruk e agora vivendo de caça e vestindo pele de animais, distancia-se da civilização e vive como Enkidu anteriormente, como percorresse o caminho contrário de seu amigo.
Gilgamesh pede para que Utnapishtim explique como ele alcançou a imortalidade e então descreve o episódio do Dilúvio. Os deuses, incomodados com o tumulto dos homens, resolve exterminá-los, mas Utnapishtimé avisado durante um sonho para que construísse um barco e nele acomodasse a semente de todas criaturas vivas. Uma chuva incessante caiu sobre o mundo poupando somenteUtnapishtim, que lhe foi concedida a imortalidade por Enlil, o deus da terra. Utnapishtim lança um desafio a Gilgamesh: se permanecesse acordado por seis dias e sete noites, teria a eternidade. Porém, o sono abate sobre Gilgamesh e ele falha. Outros eventos acontecem até seu retorno a Uruk, onde morre. O nome de Gilgamesh então é lembrado por toda trajetória de sua vida, não um evento único de conquista, mas também pelos seus infortúnios, o rei que percorreu o mundo, que trouxe a história do Dilúvio.
Assim como outros heróis da literatura que marcaram por suas qualidades e desventuras como o Ulisses grego, o Enéias latino e o Rama indiano, Gilgamesh é o primeiro a trazer um tema paradoxalmente eterno: a finitude da vida, o esvanecimento da vaidade que, como num eterno retorno, reatualiza um conflito que atravessa a história da literatura.Gilgamesh é o rei ambicioso que precisa ver sua imagem na morte de seu querido amigo, para se dar conta da própria mortalidade. Como o olhar direcionado a si mesmo, seu desaparecimento torna-se mais contundente do que o feito mais extraordinário que pudesse realizar, e a angústia da não-existência se sobressai ao desejo de imprimir seu nome na história.

André Mellagi, psicólogo, com mestrado e doutorado em Psicologia Social pela USP, teve coletânea de contos que recebeu Menção Honrosa no Programa Nascente de 2014 (categoria Texto) e foi obra pré-selecionada ao Prêmio Sesc de Literatura de 2016. Participou de diversos blogs voltados à literatura.


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