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Moto contínuo: serra-argila-corpo, performance de Ana Reis (2013) Fonte: portfolioanareis.blogspot.com.br/ |
três nomes para o sangue
i.
foi cortada de mim
como um dedo, uma mão, um braço.
me corta a língua atravessando feito faca
continua porém
membro fantasma
do que tenho saudade mesmo é de sua presença
bruta e incontornável
um outro corpo que me atravanca na cama
um joelho que me arrasta sobre o lençol
sofrer essa melancolia perene
não tem um pingo de brilho
viver nessa floresta de signos de amor
tira de mim
a régua de medir realidade
do que tenho saudade
mesmo
é de sua presença
bruta e incontornável
ii.
olho nos seus olhos por dentro
não por fora
porque não me importa sair
com a alma puída ou lavada
não me importa mesmo
se vou sair levando a alma
ainda lisa
pode ser que saia entrançada
já saiu.
olho nos seus olhos por dentro
sabendo que
é andar na navalha do risco
isso de olhar nos olhos por dentro
é de certa forma dar de presente
o fluxo do sangue
é estar perdida e encontrada
não contar a ninguém
essa sensação íntima
que quer ficar íntima
que está no sol do domingo
na areia da praia
que encontra uma maneira
de se infiltrar um tudo
nos lençóis, mochilas, etc
está na certeza
de que vivi antes duas, cinco
onze vidas
pra vir parar nessa, do lado oposto
em que acordo com seus cabelos
me fazendo um carinho involuntário
nos ombros
varrendo-me as clavículas
cheias de areia
enquanto não quero contar
essa sensação íntima
de estar perdida e encontrada.
está aqui do lado oposto
aqui onde encaro o inevitável
das estrelas de gravidade
e doçura e magnetismo
que nadam em poças
em suas mãos espalmadas
iii.
o animal onde está,
perguntou amaranta
aqui
disse úrsula
apontando o coração
bubuia
hoje eu já garanti o café.
desfiz o bordado que fiz ontem,
olhei por alguns minutos
sem surpresa
as plantas que morreram de causa desconhecida
de um dia para o outro.
algumas coisas morrem
e se vão, sem ritual.
algumas coisas são perenes
meu café é perene
meu olho é perene.
o corte sem cuidado,
sem satisfação
do alerta dos sentidos todos.
o sexto, inclusive.
talvez seja eu o próprio método
da tempestade:
salvar-se, sair ilesa, só um sonho cínico.
a cada manhã acordo numa praia nova
(braços, cômodos, uma emoção
até então desconhecida)
carregada de novo
pela onda da noite
só aceito.
lembrar meu nome me basta.
trilha
emprestar das plantas o equilíbrio
a essa posição bípede que só vê
mas não alcança
ajustar o enquadramento ao redor
ver a serra que tosse
ou a borboleta que é quase folha desprendida
ou a pedra que cicatriza uma palavra
por milhões de anos, depois ainda
de você deixar as terras soltas deste mundo
no seu tempo menor você germina
a sua própria palavra
enquanto necessário for
domingo
ser um, ser dois.
achei a fenda do tempo.
quantas vezes tive que dar essa volta?
quebrar galhos, arrancar folhas?
a vida é bamba como a vontade
(não é órbita de planeta, camada de gelo)
mas algumas conversas adiantam.
algumas conversas andam pelo bairro
com passos próprios,
a tarde talvez calma
o entardecer
sobre as costas das formigas
sobre a umidade
assentada nos cabelos
sobre a borboleta quase morta
sobre a existência sem porte
das esquinas e dos bueiros
ser dois desde sempre
em dois em um
descobrir onde a rua recomeça
fim
não vou me mudar de mim
mas também moro um pouco em vocês
e na sua morte
no dedo que brinca arrancando pétalas
e no coração cerrado
que resiste ao dedo
no que escorre por dentro
fazendo caminho
pulmões estômago útero
no que restará ao final
depois das folhas galhos
dos equívocos e dos frutos:
as raízes
que olham
avesso do azul
um passeio pelas nuvens
ignorando os sinais de que
a aura já poderia
ter se dissolvido há muito
e depois não soube mais onde procurar
em cada azul moribundo de
cada fim de dia
o mundo do avesso
o coração a tudo
obtuso
a vida torna-se clara a ponto de
tornar-se transparente, o coração vivo
pulsando na mão,
condenado
sente estar há alguns últimos minutos do abraço
da sombra
mas se resigna como
uma fruta no chão
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Jéssica Martins Costa nasceu em Belo Horizonte em 1992. É tradutora e poeta. Tem um livro publicado, Bubuia (Editora Patuá, 2017).