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uma linguagem perdida na decomposição das flores - 2 contos de Cláudia Capela Ferreira

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Felícia e a arte da felicidade


O tempo das flores havia morrido e com ele a água, onde, putrefatos, boiavam restos de caules e óleos outrora suaves e odoríferos; a jarra de cristal enegrecera-se. As fartas pétalas caídas sobre o aparador, a cor perecendo-lhes. A palidez do rosto de Felícia confundia-se com a inexpressividade do que foram margaridas amarelas, semeadas com doçura, entre a largueza dos lírios pendendo sobre a madeira ocre, como um ramo esquecido, abandonado aos dias aos pés de uma campa.
O bouquet descompunha-se: os braços pesados, os olhos mirrando e a presença sacrificada pelas cores neutrais, intransitivas, o peito ocultado e a cabeleira cujo volume aplainara, fino, a rebeldia gasta sob o nó. Agastara-se a vida, correndo delicada, naqueles dias de sol arreganhado, e nem o açúcar lhe prolongava a existência. Dois dias foram o bastante. Dois dias e finava-se sem pio, a voz amputada e a expressão pesada e enegrecida de uma tarde que se deixa estender sem concessões até à negritude. Bastava que lhe tivessem mudado a água como Felícia mencionara antes de sair, a doença da sogra aguardando-a. Água.
E o que fora aquele ramalhete em cor explodindo!, a vivacidade fresca do pedúnculo, o recetáculo abrindo-se em graça, viçoso e robusto, ventre criador, as pétalas sorrindo quase mordazes, beijos de carmim, numa inteireza de flor e fruto! Ah, Felícia, era água o que te faltara. Deceparam-lhe o caule num jardim largo e desoprimido, onde crescera num arremesso de seiva, as folhinhas estremecendo ao vento, delicadamente, e uma resiliência que se acabaria no gume da faca, o vigor esgotando-se. A espontaneidade dissipava-se sob a impertinência da aparência. O ramalhete, assim arranjado, açaimadas as folhagens amplas, dilacerado o jeito livre e selvagem, encafuava-se, como a um morto no esquife, num vaso transparente, devidamente apresentável, nem rude, nem sincero, nem bravio, nem vivaz, apenas muro afinal opaco e frio. E veio o musgo de um verde em silêncio lamentoso, próprio dos riachos calados e introspetivos, que correm baixo, mas que nunca param, nessa insuprimível fome de ser mar. 
Felícia abraçou as flores mortas com o cuidado com que as havia recebido da florista e um largo sorriso rapidamente contrito, os pés murchos no caixote do lixo, como se ali coubessem também. E mais do que um atestado de fim de vida, da celeridade com que ela corria, e assim, de abnegação de Felícia, as flores eram o retorno a si. E não era sem uma certa malícia que Felícia, mal depositava as defuntas no ataúde, selecionava, último reduto da sua energia, as novas flores, sabendo, antecipadamente, que ela se manteria apesar da secura, e elas não.
Na manhã seguinte, havia de subir a escada, o vestido bege cobrindo-lhe os joelhos, o marido avaliando-lhe os passos e o automatismo dos gestos, confinando-a à neutralidade baça que finalmente exaltava, e os braços transbordando de gerberas, numa nota engrandecida de beleza e alegria, sem culpabilização por assim ter nascido.





Gérbera - grafitti de Miguel Ram, Lisboa, 2017.






Sombra de Lília


Quinze anos. Quando sopraram as velas que os amigos espetaram desleixadamente sobre o creme de natas, ela suspirou longamente, os lábios secos do marido num beijo superficial desprevenindo-a. Os filhos adolescentes zombando, a família aplaudindo e os amigos rindo alto como no dia do casamento. Era setembro, uma brisa leve levantava-se sobre a planície e o sol queimava as peles douradas, Todos os dias da nossa vida. A morte crocitava ainda tão longe. A bela, saciável morte. E Lília deixava-se lerda sobre a cama, a pele recolhendo o calor de outrem já em fuga, que devemos sempre horas ao tempo, e a vida esvai-se, o músculo instável, a estria perfurando. Quarenta anos num estouro, ainda antes era menina, a saia enfunando branca sobre as pernas finas e irrequietas, os arranhões largos e os joelhos esfolando. Onde estaria agora Lília menina, Lília inocente, Lília ausente da realidade deturpadora do sentido vero do real? Teria morrido na tarde em que a gata Rosa foi a sepultar no jardim? Teria sido decepada quando o pai deixou a porta fechar-se atrás de si, a mãe engolindo uma lágrima que lhe cairia depois em solidão? Ou restava ainda, correndo afaimada pelo passeio acima, as flores miudinhas beijando-lhe os sapatos grossos, as meias enfraquecendo, decaindo, derreando-se sobre os pés, descobrindo-lhe as pernas ossudas e peludas? Não, não tivera tempo de a auscultar, de lhe perguntar, como quem encontra um amigo de infância: o que é feito de ti, Lília? E como vivera na ignorância, não podia agora sair da cama, que as pernas se engronhavam. Os filhos fora, na casa dos avós, três dias de sossego. E agora, Lília?
Teria sido o beijo de Carlos, ocultados pela sombra do telhado de lusalite numa época em que o amianto não era ainda ameaça, os lábios grossos, a quentura firme e a sua indecisão face à intromissão da língua na sua casta e sorridente boca, que lhe inaugurara a perda da infância? Ou a mancha carmim na pureza da roupa interior, numa manhã de inverno, motivo de orgulho, mãe?, perguntaria, depois de, meses antes, ter visto Fátima exibindo a saia rodada no pavilhão soturno da escola: Vejam lá se se nota alguma coisa quando eu ando?!, os olhos numa arrogância, as mãos gesticulando como uma adulta. Talvez nem um, nem outro momento. Talvez fosse ainda, afinal, Lília, mascando pastilha de banana, sentindo-lhe a rigidez inicial, a súbita moleza, o gosto abrindo-se para morrer seca e rija. Ou talvez nunca tivesse sido Lília, apenas sombra de Lília. 
Talvez tivesse sido Lília apenas quando nascera a mais velha, esplendorosa, cada choro um grito de alma, ou quando o segundo lhe pousou nas mãos servis e incautas. E nisto, o pé procurava o chão e logo se recolhia sob o lençol, a ruga entre os olhos acentuando-se e os dedos contando, as costas recostando-se na almofada. Seria a mesma? Seria outra, outra que não Lília menina. Lília adulta, desde quando? E o relógio ia tiquetaqueando até que ela removeu a pilha e a rodou serenamente entre os dedos. Os braços do mostrador parados finalmente. Talvez fosse a secundária, a leitura da biblioteca municipal de lés a lés, a frequência de uma plataforma partidária, a consciência política. Ou a viagem. Aquele quadro no museu: afinal, era fácil sentir o desespero e o escarro atravancado na garganta perante o fjord azul e o céu vermelhecendo. A faculdade? Os ovos frescos escorrendo da cabeça num ritual aparvalhado? A desilusão dos maus professores, aguardando ávidos por ler as suas próprias palavras, vaidade masturbatória? Era… Teresa, fraquinha, fraquinha, nem sei como me recordo do nome… E pensar que essa é que não deve realmente saber onde encontrar a pureza por mais poemas que lhe possam passar pelas mãos sempre vaidosas, as sardas abertas sobre o rosto pequeno e bonito, mas que nódoa, Teresa, que pena, posso ver-te a brincar, velas ao vento, os caracóis elevando-se no calor frágil da tua expiração, e depois perdida, morta de assalto pela suposta idade adulta de responsabilidade e respeitabilidade, perdeste tudo o que era válido e talvez eu tenha perdido também, ainda ontem disse a um puto: eu não disse isso, a tua interpretação vai além do poema, mas o que interessa, era a interpretação do miúdo, o que ele leu, é interessante que não os deixamos ter opinião face a um poema mas criticamos a falta de originalidade e criatividade, que são preguiçosos e estúpidos, mas tratem lá de escrever a temática do poema que vem naqueles livros de capas amarelas manhosas, impressos em letras graves, tema e assunto a negrito, estrutura interna e externa, que se foda isso, o que era bom era deixar os putos levitar, deixar que eles se pusessem todos por dentro do poema, por dentro de um verso, em voz alta, ali pulsando à vista de todos, numa palavra, e repeti-la até à exaustão, repeti-la até à exaustão, do corpo, da alma, da voz, até ao orgasmo ou até ao nada, para vermos como nada nos basta e tudo nos nega, enquanto eu lhes exigir o que os críticos exigem, eles não vão saber nada, nem ser nada, apenas números para os diversos ministérios, votando nulo ou branco porque a política é reles e eles não se interessam, ah!, estou cansada e tenho rugas e talvez tenha passado o tempo a ser um autómato quando prometi a alguém que não seria, e que quebraria as regras e seria outra que não os mesmos, a burguesia maninha, áspera e estéril, e agora as rugas, envelheço e afinal nada fiz, e nem sei quem aqui está, devia mascarar-me e sair à rua como louca, abaixo os números, abaixo a lei, abaixo a idade, e ser rapariga e depois menina e nascer novamente, clarividente e una, atenta à vida e sabedora das respostas que se findaram porque a pergunta não veio, e o poema envelheceu porque os olhos não o desejam, apenas o esquartejam como carniça e ele precisa de ser absorvido, saboreado, num êxtase, num espasmo de corpo e de espírito, o poema vagueando entre as veias, acendendo-lhe as negruras, beijando-lhe a carne, assim com calma, como quem faz amor, como quem leva as mãos até aos seios e os sente ainda duros, e depois desliza os dedos sobre o tronco até ao começo da anca, a pele afinal luzidia, a marca agreste do elástico, a mão gravisca sob a leveza do tecido, onde a água transborda e uma lagoa se abre em fogo, e a subtileza do afago solipso, monólogo de desfecho dourado, espasmódico, como os sonetos.
Um sorriso serenado aflorava e Lília levantava-se por fim.













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Cláudia Capela Ferreiraé trasmontana,mas  vive numa espécie de Babel, onde a dispersão da língua permite algumas comunhões identitárias. Foi professora, estudou Literatura e defendeu uma tese sobre a poética torguiana. Tem publicado prosa: «Matryoshka», na coletânea Desassossego da Liberdade, «Hostilidade», na Enfermaria 6, «Tributo», na Revista Subversa, mantendo um blogue, em http://penitencia.blogs.sapo.pt,/ e apresenta uma participação semanal no blogue da editora Livros de Ontem, em http://livrosdeontem.pt/category/escritores/claudia-capela-ferreira/.







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