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os abismos entre os escombros de uma vida - conto de Felipe Medeiros

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Fotografia: Olaf Speier (fonte: depositphotos)









Ao pai e à mãe

A tristeza é muito fácil, basta existir. Quando jovem, disseram-me que um insulto a mim era como fazê-lo aos meus pais, irmãos e todo o resto que estava na minha retaguarda, que me apoiava em todas as intempéries. Mas, a esse tempo, quantos anos já que eu só dispunha de minha espinha. Meu pai não usava farda, nem minha mãe jaleco, e os tempos não eram de guerra ou crise mundiais, o que é anormal. Meu pai não era um herói, mas era muito gentil, cara rapada, cabelo bem ajeitado, os olhos com sombra embaixo, o que nunca entendi direito. Minha mãe era como uma flor que só desabrocha nos momentos em que ninguém vê, que não chama muita atenção em nada, senão a quem ainda não sabe o que é pressa, uma flor com tantas camadas, algumas fétidas, que, ao desabrochar, se mostra muitas, desprende-se de seu corpo, tão densa que nem euro nem viração a movem de seu jazer. Tinha cabelos longos, olhos mais suaves e um toque de que jamais me esquecerei. Tinha seis anos; meu irmão, dois.
Numa noite, em que não consegui dormir um instante sequer, andei pela escura casa, um breu que ensurdecia o som de meus passos e a mim mesmo. Comecei a chorar, pois me perdera, e, não sei exatamente, a solfejar qualquer canção sem letra. Subi as escadas e parei defronte à porta fechada de meus pais, que tentei abrir, mas sem sucesso. Encolhi-me ali, com o corpo encostado na porta, a testa reclinada nos joelhos, meus braços envolvendo minhas pernas. Se o mundo estivesse em ruínas, penso que não teria ouvido. Não dormi um instante.
No tempo em que era mostrado que o chão me assentava, enquanto cismava nada, avistei um envelope no chão. Ajuntavam-se em torno de meus braços, a mão se aproximando dele, todos os meus monstros quiméricos, sorrindo algum fora e outros dentro de minha pele. Se houvesse algo a entender, a vida não seria esse espanto. “Meu filho, meu Deus, desculpa-nos”. Levantei-me, apesar de tudo, e tremi ao perceber que conseguira abrir a porta (acredito que, quando tentara antes, não era na maçaneta que segurava). O cobertor estava jogado no chão, o lençol, antes branco, estava com manchas vermelhas, e a cama estava vazia, as janelas fechadas.
No quarto, sozinho. Meu único consolo, os monstros. Enxugavam minhas lágrimas com a língua. Amorfo.




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Felipe Medeiros  reside em Petrópolis, é formado e mestre em Letras pela UFRJ, publicou um livro pela editora musAbsurda, "Sven" (2014), e tem outros no prelo.




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