Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

4 poemas portugueses, de Eduardo Sinkevisque

$
0
0






POEMA ILETRADO

Sempre quis ser um poeta magro.
Não com isso pensasse pequeno.
Rosto, corpo: filamentos próximos
de Fernando, a serem pessoas unas
com óculos próprios, não modernos.
Sempre quis ser magro, alto, calmo.
Escrever em pé e andar sentado.

Sempre quis ser mago, mágico,
escrever em todo lugar ou sítio.
Mágico que odeia mágica,
Mago a tirar pedra, palavra da manga.
Sempre cultivar coelhos, colhê-los.
Ao findar do dia, abrir a gaiola, vê-los
acariciar a rosa que se espraia neles.

Sempre viver com voracidade, unidade.
Minha violência é ressentir-me,
ser pacifista, americano, brasilianista.
Minha forma de ser pacifista é oceano,
Pacífico, a arrebentar em pedras, ondas:
mar e rio no porto, continente.
Rio e mar em ondas a se beijar contentes.
Um galo canta. Outro canto. A consciência?
Sempre conheci os que levavam porrada.
Reconheci-me nos outros, em mim mesmo.
Naqueles que levavam porradas e as davam.
Vil? Reles? Parasita? Tantas vezes tantas.
Nunca cantei pátria, fratria, mátria, Deus.
Canto para mulheres e homens, para crianças.










ORFEU

Certas matérias têm memória.
Outras, amnésia, intransigência.
Certas matérias balançam
bambu, elástico, plasticidade.
De cidade em cidade, elásticas,
pendem, dependem.
A memória é uma elasticidade,
arquitetura, silêncio, prudência.
A amnésia, uma certa saudade.
Olho para teus olhos de ontem,
vejo hoje como se ontem fostes.
Meu tronco pende ao teu,
meu pêndulo, meu Orfeu.
Meu corpo é tronco elástico,
matéria causada por uma poção
mágica, por átomos, nêutrons:
uma porção de memória
e amnésia, uma saudade, uma intransigência.
Amor com alzheimer.










DESTERRO VOLUNTÁRIO

Como caminhasse a beira mar e
de pegadas a areia fosse prenhe,
as digitais eram um único dígito:
pá a ser paz; só múltiplas pazes.

Como teimasse interpretar o mar,
só podia olhar para as ondas a
metamorfosear monstro medusa:
oráculo a decifrar; atar desatar.

Como de heróico furor despisse,
o desterro voluntário era deserto
em rastros a desenganar o mundo:
o silêncio é rosto; despreza pouso.

Como projetasse ser beira e mar e
de brisas a fronteira fosse peixe,
os sopros eram assobios, ventos:
o mundo é advento; adjunto futuro.










CANÇÃO DE GAIVOTA

Pontos brancos longínquos
telhados do Porto, pontos.
Gaivotas até onde se avistam.
De volta o que não volta, dois
pontos apenas voam, voltam.
Um papel sem pautas, pausa,
respira a pausa, a pauta, pousa
quando a falta de pauta
é ausência, carência, algo
pendente, pretendente, preso.
Dúvida como trabalho,
guerra como narrativa.
Narrativo, disponho olhos,
artes narrativas, bélicas
na invenção de certezas.
Vinho verde branco fresco
bebido em idade madura.
Vinho tinto maduro natural
ingerido em idade verde.
Não é natural que haja ou não
natureza,
que o homem beba, manifeste-se
e se arrefeça,
mas antropológica toda violência.










_____________________
Eduardo Sinkevisqueé poeta, ensaísta, professor de literatura brasileira (literatura colonial). Doutor em Letras: literatura brasileira pela FFLCH/USP. Escreve o blogmenos: blogmenos.tumblr.com


Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles