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Verter a vírgula cicatriz de sentença - poemas de Ronaldo Trindade

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Vírgula, Pollock (overwriting: Nuno Rau)








Poema para Martirene

No lugar que deixamos fica, sim,
feito poeira,
um resto de nossa paixão.

É o sangue do mundo este
remanescer,
vejamos se não:

No deserto, os geólogos
encontram a todo tempo os ossos
do mar

Fica no vinho um pouco do
trabalhador das uvas, e de sua
vontade de chorar

As xícaras que sobram lembram
o café com os amigos,
naquela cozinha
naquele tempo
naquela cidade

E se arrancam teu útero, não
termina a maternidade

Na parte funda da mágoa ainda
tem um amor,
só que perdido ou quebrado

Em qualquer biografia, uma mãe
sorrindo pra você, as horas, a
solidão

Na floresta, o silêncio do primeiro
dia na terra

E morrer um filho o que é, senão
tê-lo para sempre?

O que tento dizer, assim,
desajeitadamente, é que
coisa nenhuma é inteiramente
abandonada

Nem mesmo você,
sozinha agora,
mas com os olhos em mim

e nem eu, que uma vez estive,
pois sempre serei











Poema para Daniela

Perder a vírgula como um dente
de surpresa
Mastigar e cuspir a linguagem
(com a língua)
Verter a vírgula cicatriz de sentença
Sangue entre a frase
tijolo da ambiguidade
Substitui-la por vontade apenas
Vontade de comunicação uma
necessidade pois
uma vida sem vírgula já é um
poema
Uma pausa na tarde quando ela
responde assim
- estou sim reunidos graças a deus











Você não sabe o que é uma flor

Um dia que a flor fascina
sem resistência a gente morta
dos escritórios
A flor que não tinha chance
a mesma flor que sucumbia
ante a vaidade dos passos
dos homens engravatados
A flor que jazia. veio. um dia.
paralisar a bolsa de valores
o mercado futuro
os índices de desempenho e até
o apocalipse dos afetos
Engoliu a distância. a teima.
a agonia.
e depois ficou maior:sozinha
Era a flor daquele dia
um novo antigo remédio
que veio como um raio
aquela sombra no meio
calada como tem de ser um deus
Vívida
A flor tão vívida
e depois um fim










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Ronaldo Trindade, baiano de longe, muito longe, perto do oeste, onde a serra esconde o monstro. Trabalha nos papéis da União. Rasga os poemas que não são feitos com bom vinho.


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