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o corpo, entretanto - poema de Danilo Barcelos

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Estudo para cidade (coletivoambulante.blogspot.com.br)









corpulso

Sem corpo é impossível. Porque o corpo é imperioso, necessário. Urgente. Definidor e problemático, ponto partido de partida de onde sai-se ao outro, também corpo, nos seus espaços urbanos cheios de corpos e suas linguagens, cheios de corpos e seus suores, cheios de corpos partidos em mãos e braços, paletós e pulmões, partes indefinidas de biologia. O corpo catalogado, dividido, numerado, tatuado, contato e expandido. Explorado até o enjoo, abusado e perecível. Comum. Substantivo comum sem gênero.

O corpo definido, moldado, medido, pesado, na ideia de corpo comum social onde há um corpo especial que não é o meu, não é o seu, não é de gente possível de anatomia natural. O corpo a que se deve amar, mas sem corpo. Por que? O que se deve ter, que não é. Por que? Onde o que é corpo engloba olhos e vaginas, pênis e pâncreas? Onde joelhos e onde amídalas? Onde isso perde o nome que tem na medicina e volta ao corpo como corpo, inteiro, para ser tocado e sentido, ser bebido e devorado em rituais antigos, sugada cada gota sem desfazer a face, preservado em faixas embebidas de ervas para renascer no além, onde o corpo é necessário, porque não há mais nada além? O corpo quadro no museu exposto e quente onde a mão sente seu pulso em tela ou pele de peles se esfregando nas roupas que se raspam nas ruas lotadas? Como amar o corpo em seu corpo sem mais, e viver nele esse amor sem distância e telefone, sem site e revista, sem foto de comida às três da tarde de frente à praia em Cancun que ninguém irá com seus corpos se banhar e se lamentam, mas não lamentam perdê-los entre papéis e quartos de escritório, teses de passado tempo, histórias de Stendhal?

Na carência de alimento, o amor cria narrativas. Um início, um meio, nunca um fim. E sempre, ou quase sempre, um corpo secundário, um sentimento inflado e vermelho, em primeiro plano do palco, tentando convencer a todos que existe autônomo. Corpo como um copo com pouco líquido que cheira sândalo, mas não se bebe com a boca com sede de água de poço fresca, para lavar o esôfago da fala inútil e fatal que tenta provar que o amor é além-corpo.

Pensar o corpo nele, seus poros. O corpo no corpo, seu devir. O corpo principal e central, que emana e pulsa, que esquenta a mão do outro quando há toque, umedece-a. Sentir o corpo pulsando nas palmas das mãos, nos lados dos dedos. Dar-lhes cheiros de corpo ou de jasmim, quando achar ocasião. Vesti-lo de aromas em pedaços e pensar: é corpo que se sente nas narinas, também corpo. É corpo que se sente na boca, nas línguas e nos dentes. É corpo que se sente no outro corpo emaranhado, onde tudo se perde: noções absurdas de tempo e de limites. Um corpo com-sem fronteiras, por fim, implementado, pleno. Capaz de ousar o fim. Mas é corpo que há, sem mais.

Além é palavra. A palavra corpo e sua função de sujeito e sua função de objeto. A palavra corpo descrita da morfologia: substância substantiva substantivável de sublime. O corpo nu, sem palavras. O corpo aquém e além da linguagem, debaixo da unha e na pele riscada de vermelho, no cabelo que se aperta e se afaga com suor e sabão. A impossível implosiva violência significante impondo ao corpo o corpo, contra e entre, para e desde, onde e perante, por-se atrás, por trás, através. Terminando o inalcançável termo, tato palatal, saliva e espuma, onde não há divisórias. Corpo, enfim, sujeito e objeto sem sintaxe.









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Danilo Barcelos nasceu em Belo Horizonte em 1981. Publicou os livros de poemas Barulho Branco(CBJE-2006), Tear de ondas (Aves de água- 2012), é corpo seu norte(Kazuá-2016). Participou da coletânea Sombras (Alberti & Carnevali/Ideias Bizarras – 2007) com o conto “O espelho”. Prepara atualmente a reedição de Qu4rto Desamp4ro pela Epigrama Editorial, sem data de publicação prevista. Além de escritor, é Doutor em Letras e professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Montes Claros. Atualmente reside em Januária – MG. Escreve regularmente no blog http://www.desdequeosambaesamba.blogspot.com, onde seus livros digitais podem ser lidos.


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