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De carne e concreto - Imagens: Mila Petrillo, Luciana Lara, Marconi Valadares |
Visceral
Faço tanto xixi
que às vezes penso
que o garçom deve ter
comentado, na mesa
ao lado que eu
levantei pela
enésima vez
“É que bebo
muita água”, tento me
explicar para o porteiro
do prédio que me vê
dando meia volta
no elevador
Se o que bebo
não é água, piorou
não é água, piorou
aviso logo
que vou passar horas
na fila do banheiro do bar
A senhora da limpeza
certamente reparou
minha incontinência
precoce (Imagina
com a idade!)
Todos os olhos nas ruas
me seguem como Monalisas
moralistas julgando meus
pit stops pelas lanchonetes
dos bairros da cidade
Engraçado que quando era
criança, minha mãe dizia
antes de eu entrar no carro
- Já fez xixi?
- Mas não tenho vontade
- Tem certeza?
Vivo com essa dúvida
E os garçons, os porteiros, as senhoras
da limpeza, os olhares nas ruas
como Monalisas, como matriarcas
vigilantes, observando se
relaxei nos momentos errados
E qual seria o momento certo?
- Na piscina não pode
Alertava a professora de natação
No mar, tampouco.
Por que – nunca entendi.
- Mas os peixes não fazem xixi?
- E você por acaso é peixe?
Quando cresci, para minha
surpresa, descobri
que os esgotos iam
justamente para o mar
Acontece que xixi
não é coisa que se fale
Uma moça pede licença
e vai ao toalete
sem dar mais detalhes
Uma moça
não gargalha aos bares
Tem um sorriso contido
como o da Mona Lisa
Ontem fui numa vernissage
em que um vaso sanitário
ocupava lugar de destaque
e os olhares
curiosos, duvidosos
o cercavam
- Hoje qualquer coisa vira arte
Apontava com ironia
um dos críticos
À sombra de todas as vontades
e desvontades, existe um
eco que pergunta
- Tem certeza?
- Não
(respondo)
-Prefiro ter desejos.
O x da existência
Deixa afrouxar
teu tórax, teu maxilar
Encaixa teu cóccix
e mexe no fluxo - baixinho
Expele, exclama ao máximo
Exerce teu sexo
que tudo é reflexo da conexão
- Que luxo teu corpo perplexo!
Teu oxigênio é meu nexo
e meu paradoxo é tua paixão
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Beija-Flor - imagem da autora |
Antimetria
Se o tempo fosse gente
seria nômade
Passaria de canto
em canto
sem parar em canto algum
Se o tempo fosse bicho
já não sei o que seria
Mas teria longas patas
ou asas, ou nadadeiras
Isso sim importaria
Coisa só poderia ser
se coisa invisível
já tivessem inventado
Aí certamente
seria coisa assim
E se o tempo fosse verso?
Ah, se o tempo fosse verso
Eu poderia escrevê-lo do meu jeito
em rima e métrica milimétrica
Mas aí
não seria mais nômade
ou bicho de longas patas
ou asas, ou nadadeiras
Nem coisa invisível seria
E nada disso sendo,
o que valeriam os versos?
Contagem regressiva
Às vezes
sou tão feliz
que dá vontade
de chorar de saudade
do que vivo agora
como se em meia hora
pudesse acabar
Sorte
tem o ponteiro dos anos
que vê os minutos durarem meses
o segundo
pelo menos um dia
e ainda dá uma esticadinha
pra circunferência ter mais 5o
(Já aqui
no meu pulso
o tempo passa tão rápido
quanto as batidas
do meu coração)
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Julliane Albuquerque prefere transbordar a se encaixar em predefinições e acredita que a potência da arte vem da experimentação. Apaixonada por poesia mesmo antes de se entender por gente, ela gosta de passear por entre as suas expressões escritas e visuais. Publica no site www.jullianealbuquerque.com.