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dois breves tratados sobre a ausência, a perda e o aniquilamento - contos de Fábio Mariano

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Cadeiras vermelhas em rua de Sarajevo presta homenagens nesta sexta-feira (6)
aos 11.541 habitantes da cidade que morreram na Guerra da Bósnia (Foto: AP)





Dacha

Ezra, chamei, Ezra, mas ninguém me atendeu. O sol era escaldante, e eu estava sentada num desses bancos como os de praça, só que em duas tábuas retas de madeira. Quando me levantei, percebi que, à minha volta, tudo era deserto, e um deserto de pedras e não de areia. Não pensei em que lugar eu estava, mas percebi que, estranhamente, eu me sentia suando, mas não suando água nem nada. Apenas suando, como se isso não significasse expelir uma certa quantidade de líquido pelos poros. Eu suava, mas não havia líquido algum. Pus a mão nas costas, a fim de me certificar disso, dessa ausência, e foi então que os vi. Eram altos, e enormes, e todos eles cromados, refletindo aquele sol como se fossem três, ou cinco (e talvez fossem sete, doze sóis sobre as pedras). À minha volta, uns ganchos como todos os tipos de ganchos de banheiro, aqueles para pendurar toalhas, os que recebiam o papel higiênico, e também os que seguravam os roupões. Cada um deles com dez, doze metros, brotando do chão como se não houvesse mais nada em volta, como se aquilo fosse respeitoso. E quando os vi, tocando a pele das minhas costas, tive a certeza de que, embora eu nunca tivesse sido pendurada num daqueles ganchos, sua função era suportar não os tecidos coloridos que nos envolvem após o banho, mas pele, pele humana, cuja elasticidade punham a prova.

Meu celular tocava, e era Ezra. Levantei-me discretamente da cama, com medo de que fosse percebida; completamente perturbada. Era a primeira vez que um sonho se abatia com tal força sobre mim;mas não conseguiria falar com Ezra sobre isso. Mal atendi o telefone, ele começou a balbuciar coisas que, a princípio, não pareciam ter sentido nenhum. Entendi uma série de palavras que me parece bastante estranha, filme, Bósnia, embaixada, sangue, acordeom, Bósnia e, por fim, um nome, que não entendi. Quando pedi que ele repetisse com alma, ele me disse Svetlana, e eu lhe disse para vir até a minha casa, que tomaríamos chá, e que ele poderia trazer o namorado se quisesse; não quis trazer ninguém, e me disse que era de extrema importância que eu o ajudasse. Afinal, ele não sabia escrever alemão, e mesmo sabendo que o meu alemão era bastante medíocre, era melhor assim. Pus um pouco de água no fogo.
Ezra chegou rápido, e como sempre, me disse Adelaidinha antes de começar sua narrativa. Era estranha. Eu gostaria de ter lhe falado primeiro, mas tive que aguardar; aqueles ganchos pareciam me sufocar ao mesmo tempo em que me cegavam, como se um sonho pudesse, se bem sonhado, se tornar uma bomba de cloro. Ezra estava mais sufocado que eu; disse primeiro que tinha, havia uns dois anos, visto um filme em preto-e-branco. Como Rumble Fish ou como A Caixa de Pandora, perguntei, e ele riu, mas como se houvesse alguma piada no que eu lhe havia perguntado. Disse que era óbvio que como A Caixa de Pandora e Rumble Fish, depois me falou dessa atriz, uma atriz que deveria ter uns doze, treze anos. O filme era novo, poderia ser de 2000. Ou de 98, ele me disse, com uma pontinha de nostalgia. Nele, a menina fazia o papel da filha de um palhaço mambembe, só que o palhaço, ao invés de ter a dignidade de sumir, sempre fugia para o mesmo lugar, e ninguém fazia caso dele, só a filha. Os dois eram bósnios, e o filme se passava na Iugoslávia, um pouco antes de o pau comer solto, ou seja, quando o pau comia mais solto ainda, e quando ainda havia estupros e genocídio. A uma certa altura, a menina, cansada de tentar convencer o pai (eram sozinhos os dois) a voltar para o barracão onde se hospedava sua trupe, resolvia sair para correr um pouco em volta dele. Atrás de uma pedra, encontrava um acordeom manchado de sangue, e começava a tocar. Embora estivesse errando, e fosse claramente perceptível que errasse, ela continuava, como se conseguisse, de fato, tirar alguma música daqueles sons. Seus dedos eram calmos, e não tinham a afobação natural de uma criança. Talvez ela até mesmo tocasse de modo correto qualquer coisa atonal; o fato é que, depois de uns três minutos, ela arrastava o acordeom pelo chão, chamava o pai (que tinha dormido com sua música), e então ele acordava, e voltavam para a vida miserável de um ator mambembe. O filme terminava com a Bósnia sendo atacada, e a trupe correndo. Na última cena, um soldado apoiava um cigarro numa árvore, e parecia que a árvore fumava. Então dizia aos seus amigos, Ei, vejam isto, e o filme acabava. Forte, eu disse, É, forte demais Adelaidinha, Ezra me disse. Depois ficamos calados por algum tempo, olhando um para o outro, como se houvesse resposta praquilo, mas nos vigiassem, de modo que, se algum dos dois abrisse a boca, imediatamente um raio laser fosse desintegrar o corpo do outro. Ada, Ezra me disse, e sem esperar que eu respondesse, ele me disse Vou achar essa menina, Ada, que nunca mais foi creditada, sobre a qual procurei tudo, nome, sobrenome. Sei que vou achar essa menina, Dacha Fênitri, ele me disse. Por isso preciso que você escreva uma carta em alemão para a embaixada da Bósnia na Alemanha; por isso preciso que você me ajude, Adelaidinha, porque preciso desesperadamente achar essa menina. Mas você procurou na Internet, perguntei, pensando que eu tivesse a resposta óbvia para tudo, e ele me disse Claro que procurei, só que não havia nem registro do fantasma dela. Esbocei um sorriso, mas um sorriso um pouco torto demais, e não sei se foi o flagrante disso ou justamente o contentamento com isso, mas Ezra riu, novamente, de um jeito estranho, do mesmo jeito de antes, como se eu tivesse contado uma piada. Então resolvi lhe contar o meu sonho. Tomamos um pouco de chá, e Ezra foi embora.
Naquela semana, não voltei a mencionar o sonho, nem a Bósnia, nem Dacha Fênitri. A não ser por um dia, no qual contei o sonho para Toro, ao que ele me respondeu “é só lixo psicológico, meu amor. Só lixo, vê?”. Depois fizemos amor, como fazíamos a cada dois dias, ou a cada noite, quando podíamos nos dar ao luxo de nos ver por dois dias seguidos. Ao fim da semana, a carta para a embaixada Bósnia estava pronta, e eu a tinha checado por quatro vezes, em dicionários, manuais de estilo e também digitando as frases, uma a uma, em tradutores vagabundos de internet. Pensei em enviá-la aos meus amigos alemães, mas pensei que se preocupariam comigo. Talvez não; na verdade, eu é que não me preocupava nem um pouco com eles, e estranhariam que eu pedisse algo sem mais nem menos. De qualquer modo, pronta a carta, liguei para Ezra, que tinha sumido por uma semana. Custou-lhe atender o telefone, e quando o fez, disse que me ligava depois de meia hora. Em uma hora estava àminha porta, cheio de papéis.
Tinha conseguido, milagrosamente, contato com uma moça, doutorada em Ciências Sociais, que tinha pesquisado a vida das mulheres estupradas durante a guerra na Bósnia. O ponto alto de sua pesquisa era o capítulo sobre a relação entre as poucas dessas mulheres que não abortaram e os filhos de soldados que elas tiveram, e que mantiveram, fosse como reféns, fosse como último baluarte de sua resistência, de sua vida, de sua nação. Não era sentimental demais, mas também deixava de ser cerebral num certo ponto, foi o que Ezra me disse, e cortava direto nos nervos, sem atingir a carne, mas como aqueles cortes no gelo que em nada resultam, pois ele se reúne imediatamente. Marina Saavedra de Brito Souza e Romero, Um puta nome de princesa, eu disse, e Ezra não me respondeu; disse apenas que Marina tinha lhe conseguido uma lista das mulheres e crianças com quem trabalhou; uma outra lista dos mortos cujo reconhecimento foi possível. E Dacha aparece em alguma destas listas, eu disse, ao que ele me respondeu que não, que tinha olhado seis vezes, e que era impossível que errasse tanto. Também Marina já lhe tinha adiantado que seu nome não constava ali, e que mais que aquilo ela não poderia ajudá-lo, mas que desejava boa sorte em sua busca. Depois desligou o telefone; até então, falara com ela duas vezes por telefone, além de toda a breve e intensa troca de e-mails. No entanto, logo após a segunda ligação, (ao fim da qual ela lhe desejou boa sorte), Ezra pensou ter ouvido o toque do telefone novamente. Quando descrente de uma nova ligação o retirou da base, apertando o botão central (Ada, certa vez, lhe tinha dito que aquele botão era, quando ela ligava para ele, a tecla de acionamento de um portal para uma dimensão um pouco melhor), Marina estava com uma voz diferente; talvez estivesse chorando. Ligara imediatamente após os dois desligarem, e disse “Essas coisas são tão importantes, cara. Tão importantes”. Depois desligou. Ezra, quando me contou isso, olhou para mim e me disse, Ada, eu revi o filme. Ele é preto-e-branco como A Caixa de Pandora, e não como Rumble Fish. Assenti. Depois lhe disse que o meu sonho ainda me perturbava, e ele me disse que tinha pensado nisso.
Tomamos mais um pouco de chá, e pedi que ele ficasse e dormisse comigo aquela noite. Por que, está com medo?, ele me perguntou, e eu disse É mais do que isso, Ezra. E depois lhe disse que pensando bem, que não, que era melhor que ele fosse embora, e ele disse que preferia que fosse assim, pois não conseguia dormir havia dois dias, e que só me atrapalharia. Eu disse a ele que tinha medo de sonhar de novo com aquele deserto. Ezra olhou bem para o chão, mas bem fundo nele, como se houvesse alguma coisa além de madeira abaixo de si, e disse a si mesmo “So fuckin’ important”. Muito raramente falava inglês, e além do mais assim, só para ele mesmo. Entendi que seria uma violência lhe pedir para expor sua insônia, embora também fosse uma violência da parte dele me abandonar. Talvez essa última fosse a violência mais necessária; não sei. Ele foi embora, e depois não nos falamos por mais seis dias.
Nesse período, pouca coisa aconteceu. Trabalhei. O namorado de Ezra me ligava e me perguntava se ele estava comigo, e eu dizia que talvez estivesse na biblioteca, onde o celular não pegava. Não era mentira, embora eu não tivesse nenhuma informação, afora o meu instinto, que comprovasse isso. Briguei, também, um dia com Toro, por alguma coisa boba, pela qual nos pedimos desculpas depois. Ele me perguntou sobre o sonho, e eu me limitei a murmurar que não tinha sonhado mais e que tinha esquecido. Fiz também uma cagada enorme que quase me custou meu emprego, só que eu não estava distraída nem com medo. Foi só uma coincidência infeliz daqueles seis dias.
Ao fim deles, cheguei cansada em casa. Pensei em ligar para Ezra, mas olhei para o chão, e pensei que, talvez, eu estivesse fixando meus olhos no mesmo ponto em que ele os havia fixado. Sofuckinimportant... Naquele dia, a imagem do deserto deixou de me assolar. O que sonhei depois, de certo modo, me trouxe uma paz perturbadora que, eu sabia, nunca pertenceria a mim, mas que me tinha sido oferecida como irrecusável.

Eu andava pela calçada, uma calçada do centro de uma cidade que não era a minha. Olhava para os lados, e havia algo em cada construção; uma telha diferente, uma vidraça quebrada. As casas, no entanto, eram esparsas, e eu sentia que o céu estava prestes a ser infestado de dirigíveis; ao mesmo tempo, sabia que esses dirigíveis nunca chegariam. Conforme eu andava, no entanto, comecei a sentir que não cabia mais na calçada. Não moralmente, mas também não fisicamente; ela ainda era estreita, embora coubesse muito bem uma pessoa andando sozinha. Só não eu; naquela calçada, meus passos insistiriam em errar. E eu seria, cedo ou tarde, espremida, mas não esmagada.


*Dacha integra o livro O Gelo dos Destróieres, publicado pela Patuá em 2018.









Estrada

Dois meses antes eu tinha encontrado todos eles. Era uma mesa grande, e eles foram chegando, aos poucos, primeiro um, depois o outro, enquanto eu pensava na minha cabeça "olha aí o exército dela". A cada aluno que chegava, eu pensava na descrição que ela tinha feito para mim, em como o Tales era alto, forte, lógico e profundamente conectado com a natureza; em como o Pedro tinha feito um curso de astrofísica aos seis anos e, desde então, decidido como queria fazer isso pelo resto da vida; a Maria, que queria ser química; a Alina, que queria prestar Estudos Literários na Unicamp e ser escritora; e o Marcão, o melhor de todos, o mais legal, o mais descolado, o que queria só descobrir o que ele tava fazendo ali. Quando ela convidou os cinco pro bar, eu mal sabia da advertência, da proibição ou de qualquer coisa. Sua namorada convida você para ir pra um bar e diz que convidou uns amigos, você vai. Você não espera que os amigos sejam cinco alunos do terceiro ano do colegial, geniais, ok, pertencentes a uma turma one of a kind, ok, mas ainda assim alunos do terceiro ano. Eu não sei quanto a Lena queria que eles fossem amigos dela e quanto eles de fato se tornariam depois. Mas a cena estava montada, eu e os cinco, e a Lena, atrasada, como sempre.
A conversa girava em torno daquelas coisas que alunos de terceiro ano discutem: vestibular, a falta de liberdade no mundo, como a ciência é linda e tudo o mais. Eu olhava no relógio a cada dez minutos, pensando onde raios estaria a minha namorada quando, de repente, percebi que dois olhos se fixavam na mesa. Primeiro pensei que podia ser a Lena, claro, olhando pro espetáculo dos aluninhos dela no bar, mas não, era alguma coisa um pouco menos intensa, um pouco menos carinhosa. Olhei pro canto e vi que, sozinho, um rapaz louro, bonito, forte (nessa ordem) nos observava com um pint na mão. A mesa dele era a mais perto da cozinha, a mais escura do bar, a com a melhor vista da miséria humana, talvez. E ele conhecia cada um daqueles alunos.

Quando acendeu o primeiro cigarro, Lena já me olhava de esguelha. Não precisamos de nenhuma palavra ou de nenhum acontecimento dramático. Ela estendeu a mão pra mim, à maneira de um camarada comunista, apertou a minha mão com força e disse que então ia embora. Eu queria ter apoiado, queria ter dito que o processo disciplinar na escola passaria e que eles eventualmente veriam a maravilhosa professora que ela era, mas o que eu consegui dizer foi que tínhamos chegado a um cul-de-sac, porque era assim, dessa forma meio pretensiosa que eu sempre dizia as coisas, um cul-de-sac, e ela, professora de literatura, claro que percebeu na hora que eu usava as palavras pra disfarçar que a expressão certa era saco cheio, que não aguentávamos mais nos olhar na cara.
O processo disciplinar era quase uma acusação de corrupção de menores. Todos os pais sabiam da presença dos seus filhos no bar, mas agiram como se aquilo fosse o maior absurdo que já acontecera no colégio. Culparam a diretora por confiar numa professora tão nova; culparam a si mesmos por não zelarem tanto pelos filhos. Num mundo de seduções e corrupções de menores, eles tinham sujeitado seus pequenos a uma relação desigual de poder com uma professora que, claramente, formava um pequeno exército ideológico. Lena sabia que isso era o tipo de baboseira contra o qual somos indefensáveis, e se limitou a dizer, na acareação feita na escola, que o único propósito dela era promover a educação num espaço social diferenciado para alunos diferenciados. Ela entendia bem o jogo, mas tinham puxado o tapete dela. Quarenta minutos dentro de um carro, pegando uma estrada só com caminhões, para se esborrachar assim. Era uma pena.

O contato com Lena eu perdi uns dois dias depois, mas, por algum motivo, um dos alunos me adicionou no facebook, o que me fez continuar com a história toda na cabeça. Aliás, o que não me saía da cabeça era aquele homem sozinho, no canto do bar, olhando para todos eles. Eu fiquei sem graça de perguntar para os próprios alunos; ele também não parecia ser do tipo que gosta de ser reconhecido. Alguns minutos depois acenou discretamente para a nossa mesa, depois de ter pagado, e foi embora rápido. "Psor", ouvi um dos alunos dizendo rapidamente, mas nenhum deles pareceu lançar um olhar de apreço especial, o que me fez deduzir que ele trabalhasse na escola, mas não com eles. Talvez fosse professor do cursinho ou dos anos anteriores, talvez fosse novo na escola. Mas martelou minha cabeça, e o que mais martelava era saber que, de alguma maneira, era para mim, e não para os alunos, que ele olhava, agora eu tinha certeza, era em mim que os olhos dele estavam, embora de início o que houvesse chamado a atenção dele fossem os alunos.

Usei o contato do aluno para perguntar sobre uma fábrica que, ironicamente, ficava perto da escola. Eu tinha que fazer quatro visitas por mês, e o gerente do departamento de compras, um desses sabe-tudo, disse que qualquer aluno da escola saberia me explicar como eu chegava ali. Quando peguei o carro, não imaginava que teria de fazer uma visita técnica tão inútil na minha vida. O problema não foi ter esperado quarenta minutos para ser atendido, mas ser recebido por alguém que, além de não saber pica do que eu falava, ainda não tinha autoridade para decidir nada e precisava "realmente repassar tudo para o supervisor". Claro que não resisti à tentação de passar pela frente da escola, o que envolvia fazer um retorno bem absurdo. Quando cheguei em frente ao portão da garagem de professores, numa rua de sentido único, vi o carro embicado, e pensei na certa a armadilha que seria olhar pra Lena e vê-la me olhar de volta, mas o topete loiro me tranquilizou e intrigou e, imediatamente, sabendo que o dia estava perdido e que eu voltaria para o escritório onde não faria nada até ir para casa, resolvi que ia seguir com o carro o professor que me tinha seguido com os olhos no bar.
O resto foi rápido. Entramos na estrada no sentido contrário ao da cidade onde morávamos, eu me perguntei por alguns segundos de onde ele vinha, vi o caminhão atrás de mim dando sinal e vi quando ele, depois de me ultrapassar, fechou o professor bem na minha frente. Eu mantinha uma distância segura para que não parecesse que o seguia, mas ele deve ter tomado um susto com a buzina ou o tamanho do caminhão, porque jogou o carro no mato e capotou uma, duas, três, quatro vezes. O caminhão ignorou o acontecido e meteu o pé, e eu imediatamente parei. Dois meses antes, no bar, eu não imaginava que teria que tirar o professor de geografia de dentro do carro, com algumas escoriações, mas com o carro inteiro destruído.

Eu não sei como aconteceu, mas eu sou de fato meio assustado, e dirijo mal, essa é a verdade. O problema maior com pessoas como eu é que, como você sempre pensa em outra coisa, naquilo que você não é ou não está fazendo, você acaba se desconcentrando do que realmente está fazendo, de modo que quando o caminhão buzinou e vi seu vulto verde, tive a certeza de que estava pra morrer e que tinha que sair dali. Virei o volante inteiro para a direita e caí no meio do mato. A sensação era igual à de uma montanha russa, e eu pensei que pelo menos antes de morrer ia conseguir voltar para o Busch Gardens, para a Disney, para toda aquela coisa que um professor de Geografia devia criticar e achar brega mas que eu achava linda, os Estados Unidos da América. À medida em que eu ia girando e girando, pensava "mas cadê o sangue, cadê a dor?", e eu sentia uma batidinha ou outra, e o carro parecia ir se amassando e se amassando em volta de mim, e as coisas só me arranhavam, batiam, mas não me matavam, insistiam em não me matar. E então tudo parou, eu contei até vinte e pensei que, sozinho, não dava pra sair. Até que ele apareceu, e ele era bonito como da primeira vez que o vi, esperando a professora Lena no bar dois meses antes, e na hora eu pensei na coitada da Lena e na sacanagem que aprontaram para ela, a denúncia, o processo disciplinar e a demissão anunciada.
"Não fui eu", foi a primeira coisa que eu disse, e ele me disse que me acalmasse, seguiu todos os procedimentos de primeiros socorros como alguém que conhece essas coisas bem a fundo, como se ele fosse alguém que em algum momento da vida tivesse visto obsessivamente séries de paramédicos na Sony ou na Warner, e me disse que ele tinha visto todo o acidente, que não era para eu me preocupar. Que o caminhoneiro é quem devia ter parado, e que ele se sentia um pouco culpado, e então eu disse "não, não fui eu, você é o namorado da Lena, não é?", e ele disse que não era mais, e eu disse que não tinha sido eu quem a denunciou. Não sabia quem ali no bar tinha sido, talvez algum dos próprios pais, talvez algum dos filhos da orientadora, o que era bem provável, mas o fato é que eu não sabia mesmo, e ela também não sabia, e que a escolha óbvia tinha sido eu. Ele me disse que ele e a Lena tinham terminado logo quando o processo aconteceu, e que ele já não tinha uma conexão emocional com ela, e que se eu estava falando essas coisas era porque estava bem, mas ele pedia licença e ia só chamar os médicos, e aparentemente eu tinha sido marcado para viver. Eu achei essa expressão tão engraçada, marcado pra viver, como se a minha existência fosse um milagre lindo, e eu queria dizer para ele "você não tem ideia do que você está falando", mas eu só assenti com a cabeça, pensando um pouco nos supermercados das cidades vizinhas.
Eu passara a visitá-los, no começo, como uma tentativa de não ficar em casa, de não ter que falar com meu pai. Sentia pena pela minha mãe, que ficava preocupada, mas eu sempre dizia que tinha ido visitar alguma amiga ou amigo, o que a deixava mais tranquila, ou que tinha ido buscar informações pro doutorado, que era sobre festas populares e por isso exigia muito trabalho de campo. Comecei a colecionar as sacolinhas um pouco depois, e então virou uma rotina. Eu ia até uma cidade um pouco distante - seguia a estrada de acordo com a escola onde estivesse - e então parava num supermercado e dava voltas ali por uma ou duas horas. Comprava sempre alguma coisa pequena, porque a fila era uma exposição muito grande, e então tinha uma sacola, que eu guardava no porta malas depois. Eu nunca levava nada ali, e depois arranjei uma sacolona, dessas em que está escrito "eu sou uma sacola verde", para enfiar todas elas. Era uma coleção desajeitada, mas me bastava saber que eu tinha estado em tantas cidades, tantas vezes; e isso minha memória me dizia sempre, sempre.
Os médicos chegaram e ele me acompanhou. Vi quando ele ligou para a empresa e disse que tinha feito um retorno errado, que presenciara um acidente e que estava prestando socorro à vítima, e não pude deixar de pensar o quanto aquilo era desnecessário diante do meu estado. Ela era bonito mesmo, mais do que estava quando eu o via a primeira vez naquele bar, e pensei no quanto ele combinava com a Lena. Ela me odiava agora, mas nunca tinha sido muito simpática antes, então não fazia lá muita diferença. Eu sempre tinha a impressão de que me achavam retraído demais e eu estava na escola havia um bom tempo. Essa combinação sempre faz com que as pessoas pensem que você é um puxa saco ou um esnobe, e eu não era nenhuma das duas coisas e odiava as duas com fervor. No fim é isso o que sobra, a fama que atribuem a você.
Conversamos um pouco e ele me perguntou algumas coisas bobas. Rotina da escola, se eu viajara muito - na cabeça dele, professores de geografia viajavam, e eu expliquei que não, que era eu que gostava mesmo de viajar e sempre juntava dinheiro só pra isso - se eu gostava de cervejas artesanais. O papo foi legal, e eu o agradeci por ter salvo a minha vida. Expliquei que, quando o vi no bar, tinha sofrido um acidente havia não muito tempo, mas quando ele perguntou mais sobre o acidente, corei e disse só "parecido com esse", porque eu não me atrevia. Os risinhos de vingança dos outros professores - dos que me achavam puxa saco ou esnobe - ainda pairavam muito tensos e claros em volta de mim para que eu pudesse compartilhar a história. Aquele homem tinha acabado de me dar uma prova de compaixão, mas ainda assim eu não consegui explicar a história para ele. Ficamos quites, talvez, porque ele nunca chegou a me dizer por que me falou que se sentia culpado - eu o interrompi e ele talvez tenha esquecido, talvez tenha preferido esconder a culpa. E eu respeito isso nas pessoas - o querer esconder.
O que eu não queria contar era que um pouco mais de três meses antes de vê-lo no bar, numa das idas aos supermercados, eu pegara uma via errada. Não sei dizer como – eu disse que sou distraído na estrada – mas eu tinha ouvido falar que existia um caminho melhor que o que eu fazia para voltar para casa, numa dessas conversas que a gente ouve por acaso. Resolvi tentar o tal caminho e me perdi. Já estava escurecendo, eram quase seis da tarde, e eu só via umas casinhas de favela esparsas, de gente muito pobre. Pensei comigo mesmo que a humanidade era boa, que aquelas pessoas eram humildes e que ainda existia alguma compaixão, e desci, com meu uniforme de professor de uma escola de outra cidade, relógio no pulso, de óculos escuros na testa, e perguntei a um senhor se ele sabia me dizer como voltar pra estrada. Ele me pediu que esperasse ali um segundinho, e qualquer pessoa com um pouco de juízo teria se enfiado no carro e corrido, mas quando eu olhei para trás quatro caras já se aproximavam de mim, e o senhor voltou e disse "ó o bichinha aí", e então eu pensei que eles podiam levar o carro, levar o relógio, levar qualquer coisa, mas eles não levaram nada, só me bateram, me bateram até dizer chega, me derrubaram no chão e me deram porrada quase até eu ficar inconsciente, e então cuspiram em mim e me falaram que era só eu seguir reto, e que era pra eu tomar cuidado e pra nunca mais parar ali, e me mandaram virar homem. Fiquei um mês tomando remédio para tudo o que é tipo de dor, fiz todos os exames que se pode imaginar, mas assim que o médico me liberou voltei a dar aulas. Comecei a revezar os supermercados com uma ida a um bar durante a semana, sempre sozinho. Foi nesse bar que o vi, e que vi os alunos do colégio.
Talvez eu pudesse ter contado.



* Estrada saiu pela revista virtual Thalássea, Volume 4, em Julho de 2017.



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Fábio Mariano nasceu em São Paulo, capital, mas foi criado em Campinas, SP, onde vive desde o seu primeiro ano de vida. É formado em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Campinas, e defendeu em 2015, nessa mesma instituição, sua dissertação de mestrado em Teoria Literária sobre a obra de William Faulkner na França. Publicou O Gelo dos Destróieres, seu livro de estréia,pela Patuá, em 2018.


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