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Ilustração: Michael Davitt |
Ele tentava disfarçar, é claro. Mas, que conversa tediosa....até dominava o inglês, não era esse o problema. Era o tom de voz do sujeito, aquele entusiasmo, os gestos largos. Também era um profissional, por que mostrar tanto entusiasmo? Para ele tudo era muito técnico. Uma paisagem incrível, o hotel ao pé da montanha, aquele terraço, perfeito, alguém até se diria em alguma ante-sala do paraíso. Poderiam estar esmiuçando detalhes técnicos ou pensar em descer para a cidade, procurar umas garotas, prostitutas que fossem. Somos geólogos, pensava, não organizadores de uma nova ordem submetida ao canto das pedras, à historicidade dos muitos períodos geológicos. Sabia apreciar a ciência, mas, esse entusiasmo... esse cara parecia ser muito feliz, antes de degringolar na série mineral mostrara fotos de esposa, filhos, casa, mãe, pai, sobrinhos, belos lagos de onde morava, tudo regado a tapinhas nas costas e muita cerveja. Tinha ombros largos, um porte físico atlético, uma saúde que se desnudava sem nenhum pudor.
Devo ser um tipo meio doentio mesmo, ia pensando. Tanta luz, tanta clareza me oprimem um pouco, o meu país de terceiro mundo é bem mais natural para essa minha personalidade. Gosto da luz, mas, melhor com o mar, parece mais justificada. Aqui, bem, é um lugar muito parecido com aquele em que o tal deus toma suas decisões. Fazer um simpósio nesse cenário era um ideia e tanto. A rocha, os geólogos... muito interessante, pensara,.
Até descobrir que ali só estariam eles mesmos, mais três ou quatro famílias, dois casais, as atendentes do hotel, o meticuloso e simpático gerente e aqueles muitos homens. Apaixonados por pedras. Ninguém falava em ir até o centro da cidade nem que fosse para fazer umas comprinhas. Ah, o guia tinha falado dessa possibilidade no último dia. Eles? Tinham trazido, cada um, uma pequena lista com preferências de filhas e esposas. Todos casados, claro. Uma viajem como aquela, hotel + vôo + refeições e tal, era bem cara. A Universidade demorou um pouco para aprovar aquela despesa. E ele acabou vindo sozinho, sob o claro despeito dos colegas.
As reuniões eram de manhã e de tarde. Ele participava de umas três mesas. Faria uma intervenção no quarto dia. Estava distraído. Acho que é stress, pensou. Em alguns momentos se integrou no desenrolar da coisa. Fez perguntas, um pouco de discurso em alguns apartes, percebeu que era respeitado e admirado pelos outros. E, afinal, é só isso que se busca, ia pensando. Estou no patamar dessa confraria que reúne alguns dos melhores especialistas do mundo. Deixei de viver algumas vezes para isso... algumas vezes, foram noites, livros, teses, provas, aulas preparadas com rigor, trabalho de campo. Suspirava.
A noite, mais pedras na conversa, cerveja, aí, no final, rolava alguma descontração, alguém sugeriu uma farrinha. Viu que os outros, pareciam uns meninões, ficaram um pouquinho tentados. Tomara... pensou. Enfim, foi combinado para o último dia, depois das compras. Mulheres e tal. Uma chatice pensou, o clube de crochê em férias.
Foi no quinto dia, o penúltimo. Eram 15 hs mais ou menos. Foi tomar um chá fora do anfiteatro. Tinha biscoitinhos, mas, não a infalível recepcionista. Ele ficou sozinho no grande saguão. Algumas das portas de vidro estavam abertas. Foi até o terraço. A vista grandiosa, matéria, árvores, copas, troncos, flores, um pouco mais escuras, vítreas, o ar pesado, denso? Rarefeito?
Diferente, o ar. Viu que o edifício tinha outras ramificações e foi seguindo. Madeira, escadas, pelas janelas percebeu que se aproximava mais da vegetação. Foi seguindo, natural percorrer aqueles caminhos, eram doces, sinuosos, sem rompantes. Não pareciam inquietantes. A montanha estava em todos os lados, porém, seu fosso, quase gigante, um império, ele percebia, percorria toda a noção de tempo e espaço do lugar. Inquietante, pensou. Mas, seguiu.
E seguiu, respirando, o calor do dia fazendo uma cobertura quase rigorosa em sua pele. Tirou o blazer. E olhou para cima. Era vasto, aberto, percorrido por um vento que não se domava, não exigia e não se perturbava. Um senhor, pensou, ao mesmo tempo um pouco insatisfeito, quase contrariado com aquela definição. Talvez o sol e percebeu que ali tinha pouca proteção, chegava mais junto, um tirano, decidiu. Não, o senhor era outro. Iria acreditar em deus? Tremeu. Não. Mas, está aqui. Vai comigo, por que nunca percebo? É sutil... está na terra. E parou. Deu meia volta, na terra. Sentiu o corpo percorrendo seu corpo com a mesma impertinência com que ele fazia sobre o corpo. Somos deuses... em cada fibra de meu corpo. E percebeu o orgulho do outro corpo, sua altivez, sua vitória na matéria, sua bela conformação. Carinhoso, sorriu. Olhou para trás, até aonde eu poderia ir com essa segurança?
A noite, no quarto, abriu sua janela. Estava frio. Exibido, pensou. Majestoso, elogiou. Obrigado por hoje, não vou te esquecer. Tens belas lembranças, magnífica trajetória. Tem iniciados aqui e te conhecem. Por isso foi fácil. Tuas estrelas, essas divas das noites frias, mas, nunca ascéticas, também existem amantes aqui, não vieram hoje. Acho esse o momento mais significativo de minha vida. Sistemas de linguagem, como de vida. E, enfim, sorriu, inteiro, em si, no corpo.
JANDIRA ZANCHI (Egos e Reversos, inédito).