Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

6 poemas de Jorge Rein

$
0
0


CARTA A UMA LEITORA DESCONHECIDA

a duas mesas de distância da minha
no acanhado café da livraria
o teu olhar me despe descobrindo
ternuras e defeitos
da mais profunda
das anatomias

nunca te vi na vida
por mais que seja etéreo de memórias
teu rosto é camafeu
que eu guardaria
porque esperei por ti
desde o primeiro verso
desde o primeiro berço
da primeira poesia

já foi meu o poema
que escolhes distraída
e dele tomas posse
como se acarinhasses cada linha
os teus lábios esculpem em silêncio
as palavras que talvez fossem tuas
antes mesmo de serem concebidas
minha boca na tua finalmente
é um beijo de boas vindas

te imagino promíscua
porque é intimo o ato que praticas
com um desconhecido
e há outros livros na mesa
nessa sala de espera
do amor que por enquanto
me dedicas

espias o relógio e abandonas
às pressas meia dúzia de autores
que ficam como é praxe
a ver navios que afundam
nos encalhes

o amor é passageiro
penso com meus fundilhos
e os poetas são aves
migratórias que assumem
os riscos desses voos


ÁGUAS FURTADAS

sou de roubar palavras
de qualquer boca alheia
essas meias palavras
de cerzir os poemas
e demais graças plenas
e demais graças plenas

furto à boca da noite
roubo à boca de cena
as palavras insones
de cativar plateias
melhor do que as ideias
melhor do que as ideias

e das bocas do fumo
sugo à boca pequena
os vícios das palavras
aftas cáries gangrenas
que estraçalham vidraças
como se fossem pedras
como se fossem pedras

é na boca do rio
tão doce quanto a merda
que as mil bocas das minas
injetam nas suas veias
que garimpo na lama
as palavras perversas
maldições eternas
maldições eternas

mas em cada palavra
eu procuro teu nome
porque é nele que a rima
se completa
tua boca é que me absolve
ou me condena
ora morde
ora beija
ora veja
ora veja


INTRODUÇÃO À ANAGLIPTOGRAFIA

seus dedos tinham ciência
do tônus da pressão
que faz ceder a vagem
para entregar a ervilha

as palmas das suas mãos
deitavam massas
no tampo de madeira
da mesa da cozinha
especulando sonhos
de leite e de farinha

capaz de e viscerar o namorado
sem a menor noção
formal de anatomia
depois partia em postas
temperava
e puxava o milagre
no alho ou na salsinha

eram sábias suas mãos
ou então eram sabidas
ensinaram as minhas
ainda torpes e tímidas
a leitura das peles
que protegem as almas
femininas
códigos e tatuagens
que a nudez dos meus olhos
quase nem percebia

toda mulher é história
e geografia
tem vulcões em repouso
nascentes de águas mornas
que transbordam do leito
em lençóis de alquimia

toda mulher foi feita
ela me disse um dia
com o afã de ser lida
pela polpa dos dedos
de um amante que cuida
a pronuncia dos versos
da sua fantasia


mas repara meu anjo
que é para ler pausado
e não de carreirinha


 DO ESPÍRITO DO TANGO E SUAS PRELIMINARES

o olhar do predador
examina o entorno
à procura da presa
leva a hipnose por trás
da cortina das pálpebras
e na boca um sorriso
de afiadas navalhas

ele prepara o bote
como quem tira brilho
dos sapatos de cromo
na flanela das calças
coreografia da caça

o receio da vítima
é não ser a escolhida
permanecer anônima
entre a flora e a fauna

o predador  avança
com passos de leopardo
com ares de preguiça
e outras graças

por fim estende a garra
até alcançá-la
e sussurra ao ouvido
da fêmea já excitada
uma fórmula antanha:
“A moça me concede
o prazer desta (an)dança?”


SAFRA

me levaste a apreciar a agricultura
amar-te é um exercício de paciência
semear em ti não basta
é preciso agradar as vontades da terra
aguá-la na medida
evitando os excessos dos dilúvios
e a aridez das secas
é preciso proteger a lavoura
de pragas e inclemências
e aguardar pacientemente os ciclos
em que a face da lua se oculta ou se revela
chora sorri ou se esconde
sob mantos de suspeita
amar-te é um exercício de paciência
que compensa
quando floresces planta
dos pés à altiva testa
e as bocas do teu corpo
todas elas
invocam pelos ritos
ancestrais da colheita


IDENTIDADE

somos netos de avós desconhecidos
que as câmaras de gás arrebataram
herdamos as suas cinzas e a fumaça
jogos que nunca houve
e doces que azedaram
bocas que não assopraram feridas
nos joelhos e mãos que não afagaram

é na ausência de provas
que inventamos lembranças
nos comovem cantigas
em línguas muito estranhas
fotos como de outonos
enrugadas
cartas que não chegaram

essa falta de colo
é que nos mata


extraído de "Grafiteiro do Avesso" (Patuá, 2017).
Galeria: Marcel Caram





Jorge Reiné jornalista, dramaturgo, poeta, ficcionista e tradutor. Nascido em Montevidéu, Uruguai (1948), reside em Porto Alegre desde 1971. Possui textos publicados em revistas, cadernos literários, e livros coletivos e individuais, assim como diversas obras de ficção e de teatro premiadas em concursos no Brasil, Uruguai, México e Alemanha. O livro Grafiteiro do Avesso (Patuá, 2017) representa sua primeira incursão específica na poesia, porém, o uso da linguagem poética é uma característica permanente e marcante em todos os seus textos, que transitam pelos mais diversos gêneros literários.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548